domingo, 17 de março de 2024

Setor da bicicleta em crise; mais uma vez

Eu entrei no mundo da bicicleta e dos pedais no meio da década de 70, quando o setor vivia sua maior crise, não só aqui, Brasil, mas no mundo. O marco desta crise fica patente quando se vê a qualidade das bicicletas vendidas então: um lixo. O número de usuários da bicicleta diminuía sem parar, o que afetou toda cadeia de produção, que por sua vez teve que cortar custos, o que reduziu sensivelmente a qualidade geral da bicicleta, peças e acessórios. Como consequência o número de ciclistas diminuiu, e estava criado o pior ciclo vicioso possível. 

Antes de continuar, deixo dito que não sou historiador ou pesquisador, que o que escrevo a seguir vem de lembranças de leituras e conversas que tive pela vida. Serve só como referência para quem queira se aprofundar no assunto, que é vasto, interessante e muito significativo do que aconteceu não só no mundo da bicicleta, mas da vida de todos em geral. 
E entro no assunto porque numa das revistas especializadas, a Bike Magazine, saiu um artigo mostrando números, que não são nada bons. 

Voltando:

O ressurgimento mais marcante da bicicleta em toda sua história que tem como marco Amsterdam, a partir de 1972. A luta por mudanças em cidades Europeias não começa aí, mas o retorno da bicicleta como peça importante para recuperar a qualidade de vida de todos sim. Nos Estados Unidos, uma década mais tarde, surge o fenômeno mountain bike com sua alta qualidade, resistente, divertida, precisa, segura, e, mesmo sendo uma bicicleta vendida como esportiva, pode-se dizer que ali deslancha mais outra ressurreição da bicicleta como modo de transporte, agora abrangendo um público muito mais amplo e diverso, talvez a mais abrangente de sua história.

O primeiro ressurgimento vem logo depois do início do fim dos biciclos, final do século XIX, com o início das vendas da bicicleta de segurança, basicamente a que conhecemos hoje, e uma sensível diminuição do preço devido à consequente padronização, tornando-a acessível ao grande público. 
O boom do uso das bicicletas nos pós Primeira Guerra Mundial (1914-18) e Segunda Guerra Mundial (1939-45) foi decorrência do colapso total urbano e econômico sofrido pela Europa, principalmente, mas não só.
A primeira crise do petróleo, em 1973, pela primeira vez questiona o uso indiscriminado do automóvel e dá um empurrãozinho para a bicicleta. É muito provável que tenha ajudado os movimentos populares europeus que pediam a recuperação da qualidade de vida nas cidades, o que ajudou na melhoria da segurança do uso da bicicleta.
 
O crescente caos urbano causado pelo uso irracional do automóvel é que vem colocando a bicicleta em pauta como bem mais que uma alternativa de transporte. 

Estes e outros momentos das sociedades e das suas economias obviamente afetaram o setor da bicicleta. Poderia falar sobre as causas das crises sofridas pelo setor, mas o resumo é mais ou menos simples: em momentos de estabilidade econômica e muito dinheiro circulando a bicicleta entra em crise. 
O que diferencia o momento que o setor está vivendo agora é um fator novo: a entrada das elétricas, não só bicicletas, mas de todas as mobilidades elétricas, que ao que tudo indica vieram para ficar. 
A questão é que o setor de bicicletas ainda está montado muito voltado para fabricação e vendas de bicicletas movidas a arroz e feijão. Em outras palavras, a concorrência agora é interna, ou "fogo amigo". Vem aí uma mudança muito maior que se possa imaginar, não só no setor de bicicletas, mas nas cidades e principalmente na cabeça das pessoas.

Há uma sensível diferença entre o que aconteceu nos Estados Unidos e na Europa em cada um destes momentos históricos da bicicleta. Estados Unidos foi muitíssimo menos afetado pelas duas grandes guerras do que a Europa, que ficou completamente devastada, principalmente depois de 1945, onde a bicicleta se transforma numa importante alternativa de transporte, e porque não dizer sobrevivência. A Primeira Guerra Mundial foi uma guerra de campo, a Segunda Guerra Mundial foi uma guerra de mobilidades e urbana, ou seja, destruiu praticamente toda infraestrutura de transporte. Mesmo em vias em péssimas condições, onde automóveis tem muita dificuldade de rodar, pedalando sempre é possível achar caminhos e seguir em frente.
A diferença de escala de mercado se dá porque enquanto a bicicleta europeia era e continua sendo uma bicicleta para transporte urbano e diário; a americana era voltada essencialmente para o lazer, ou uso eventual.

Mountain bike entra no mercado a partir de 1984. Foi sobretudo uma moda esportiva / urbana / divertida que estourou num país de longas distâncias e cidades desenhadas para os automóveis, e com muito dinheiro circulando. Antes do mountain bike, bicicleta era coisa de criança, aliás, de bem poucas crianças americanas. Era difícil ter onde pedalar. A maioria morava em cidades do automóvel. Mais, muitos moravam e seguem morando em subúrbios, distante do trabalho, comércio, serviços e mesmo sendo tranquilos, são monótonos. Normalmente toda estrutura urbana não tem qualquer infraestrutura para ciclistas, não raro pedalar é proibido ou restrito a parques. Tudo jogava e de certa forma seque jogando contra a bicicleta nos Estados Unidos, mas está mudando, NY é um dos exemplos mais recentes.

Um cartaz numa locadora de Amsterdam ironiza as diferenças: "Americanos usam capacete. Nós (holandeses) pedalamos".

Ao contrário dos Estados Unidos, os europeus com suas cidades pequenas, no geral com urbanismo ou influência medieval, ruas tortas, estreitas, muitas criadas então só para pedestres ou cavalos, aproveitaram o ressurgimento do interesse pela bicicleta fortalecendo políticas de incentivo não só para os ciclistas, mas todos os não usuários do automóvel. O termo "mobilidade ativa" surgiu muito tempo depois; antes era usado "mobilidades não motorizadas", apontando para o automóvel como o centro do universo.

A febre do mountain bike se espalha pelo mundo e muda o padrão de qualidade das bicicletas, mudando alguns padrões de precisão e confiabilidade inclusive na Europa. Passada a primeira mania do mountain bike as vendas caíram, mesmo assim houve um aumento do uso da bicicleta nos Estados Unidos e o surgimento de movimentos de pressão para melhoria da segurança dos ciclistas. Acompanhando todo este movimento cresce o setor, os fabricantes de bicicletas, peças e acessórios começam a fabricar suas bicicletas mais básicas no oriente, Japão, Taiwan e China. O setor muda completamente seu perfil, entrando numa nova era, a da bicicleta confiável. Estados Unidos e Brasil deixam de estar entre os cinco maiores fabricantes de bicicletas do planeta. China entra para valer no mercado e em pouco tempo tem suas próprias marcas para concorrer com as grandes americanas e europeias, uma em particular: Giant.  

O pensar europeu é muito mais pragmático, voltado a soluções coletivas, funcionais, que se sustentem a longo prazo. A bicicleta, que já era uma tradição europeia, veste como luva de pelica nesta forma de pensar, mesmo assim as mudanças vieram lentamente, assim como o crescimento do mercado de bicicletas. Vale lembrar que uma pesquisa realizada na Suécia aponta que 27% dos usuários da bicicleta se pudessem iriam de carro, o que faz todo sentido no meio daquele frio, chuva e neve.

Holanda, o país referência, é pequeno e plano, as distâncias entre as cidades são curtas, se não está ventando, ou nevando, que é mais raro, ir pedalando é muito prático, econômico e agradável que num automóvel. Ali a bicicleta tem tudo a ver, mas a imensa maioria são bicicletas básicas, as 'old dutch', velhas holandesas. 

Neste últimos anos se viu uma quebradeira das grandes marcas de bicicleta americanas que se firmaram apoiadas no fenômeno mountain bike, mas não só entre elas. Segundo um artigo, Cannondale foi administrada com paixão e não razão, o que lhe causou sérios problemas. Várias marcas sofreram com a paixão pelo negócio. Paixão é uma coisa, negócio é outra. Misturar os dois costuma não dar certo. Negócio exige frieza, racionalidade, compreensão do ambiente de negócios.

Ponto importante para esta dificuldade das fabricantes e do setor que vem acontecendo faz tempo é a troca da bicicleta por pequenas motos ou scooters mundo afora, principalmente na China. Importante dizer que a relação do povo chinês com as bicicletas foi bem ruim até que Mao Tsé-Tung impôs, sim, impôs o seu uso logo no começo da Revolução Comunista. Faz alguns anos o governo chinês novamente criou estímulos para que a população deixe as motos e scooters e volte a pedalar. 
 
A alternativa dos fabricantes frente aos novos desafios do mercado foi de novo estimular mais uma 'moda', agora as 29, bicicletas de estrada, gravels, dentre outras categorias. Interessante notar que o mercado europeu sempre foi menos suscetível a trancos e bolhas, e a razão pode estar que lá eles são pragmáticos. A bicicleta tem que levar daqui para lá e voltar, para facilitar a vida. Modas, novidades? 
A pandemia ajudou demais o mercado, que acabou virando uma bolha. Parece que a pandemia não foi bem entendida como uma situação especial. Acabou a pandemia e os estoques de todo setor ficaram inchadíssimos. 
É impressionante a miopia histórica do setor de bicicletas. Repetindo: paixão é uma coisa, negócio é outra. Misturar os dois costuma dar ruim.

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