terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Pequenos proveitos próprios e a grande violência

Não consigo entender o que tem acontecido, porque a violência saiu completamente dos trilhos. O número de casos de violência sem sentido que estamos vivendo tem que ser combatida, e não só com polícia ou justiça. A reversão deste caos só se fará quando alguns conceitos sociais atávicos a nós, brasileiros, forem quebrados. Definitivamente não falo sobre política ou ideologias, mas sobre mudar comportamentos e dar exemplos. São os bons exemplos que estabelecem as linhas e limites sociais que não devem ser ultrapassadas. 
O sujeito que tem uma Mercedes Bens SUV Class G, uma das mais caras e sofisticadas do mercado, não pode em hipótese alguma jogar na rua um papel pela janela. A simbologia vai muito além da falta de educação. Afirmo com todas as letras que o proprietário da Mercedes é um gerador desta violência generalizada.

Meu sonho sempre foi que a introdução da bicicleta na cidade se transformasse num ato civilizatório, de boas atitudes sociais, de cortesia, instrumento para diminuir a violência. Doce e estúpida ilusão. Estou metido nisto a muito tempo e só agora, em 2023, ouvi um dos pilares do movimento cicloativista sair a público pedindo para não reagirem contra motoristas 'imprudentes'. Ou, para ciclistas não entrarem no olho por por, dente por dente, o outro sempre é o culpado.

Convivi com todo tipo de gente. Somos todos humanos. A maioria quer fazer bem feito, mas quando a base de convívio é viciada fica muito difícil discernir o que é correto, ou, melhor, decente.

Uma das mulheres mais educadas, cultas, chiques e vivenciadas que conheci, para meu completo espanto desceu do carro para guardar a vaga para seu marido enquanto ele dava a volta no estacionamento. Ficou parada no meio da vaga mesmo quando apareceu um carro e tentou estacionar. O que se seguiu foi uma breve e muito grosseira discussão entre a fina senhora e o motorista que apareceu querendo estacionar na vaga livre que naquela situação lhe pertencia. Prevaleceu a vontade dela. Isto aconteceu nos Estados Unidos, onde uma atitude anti social destas beira o incompreensível, o socialmente inaceitável, com possibilidade até de acabar com polícia. Ela sabia, vivia parte de sua vida por lá, foi uma das pessoas mais cultas, educadas e vivenciadas que conheci.  Naquele momento morria meu delírio da existência de um comportamento civilizado e formalidades sociais as mais básicas tão propagadas aos quatro ventos pelas mais finas senhoras educadas de nossa sociedade brasileira.  O ano? 1991. "Gente fina é outra coisa", de fato, só rindo. Pasmado, fiquei olhando a discussão pela janela do carro sem saber o que fazer. Como era convidado e tinha a frente, dirigindo o carro onde eu estava, um senhor que também pregava aos quatro ventos de terra, mar e ar, o estrito respeito às regras sociais mais básicas, bom dia, boa tarde, boa noite, por favor, muito obrigado, calei profundamente constrangido. Esperaria esta grosseria de qualquer um, menos daquela senhora, uma das minhas referências do ser chique, ter civilidade e cordialidade social.

Ali começou a cair a ficha para valer do Brasil real no qual vivia e sigo vivendo. Pouco mudou, provavelmente piorou. Ali começaram a derreter alguns sonhos de coletividade, que jamais se realizariam, como não se realizaram e dificilmente se tornarão realidade tão cedo, se é que se tornarão realidade algum dia. Duvido. 

Viajar para fora do país levando consigo o desejo de "um banho de civilidade" soa uma arrogância, mas eu diria que não é. Esta bagunça aqui cansa. Ficar uns dias fora do Brasil para ter o direito de sair às ruas a hora que quiser, caminhar por onde bem entender, falar no celular sem ficar com medo, e outras trivialidades que nos deveriam ser triviais, não pode ser tomado como arrogância. 
Não quero mais acordar com pesadelos que minha pequena e simples casinha foi invadida.

Quero coisas simples, básicas. Ser recebido numa loja, café, restaurante ou onde quer que seja, com um bom dia faz bem para a saúde mental. Não ter que esperar que o atendente termine a conversa, quando não fofoca, com o outro atendente, ou que o vídeo termine, é agradável para qualquer um, mesmo para os que acham estes comportamentos sociais normais. Cada um se apropria do que pode para se sentir alguém nesta selva de pedra. 

Você sabe com quem está falando já foi coisa de alguns que se achavam acima dos outros. Faz um bom tempo se espalhou por todos níveis sociais. Nunca deveria ter se transformado numa questão de sobrevivência social. Já tentou pedir gentilmente para que um funcionário faça diferente do que está fazendo? Não tente porque o funcionário se sentirá ofendido e irremediavelmente continuará fazendo a caca que estava fazendo de cara fechada, isto quando não completa: "eu sei o que estou fazendo!", e conversa encerrada para não piorar. Você que chame um outro para tentar remediar o que foi feito. Pagamento duplo, raiva tripla.

A grande revolução social que tanto desejamos só vai acontecer quando os privilégios diminuírem. Acabar não vão, não tenho ilusões. O ideal seria zerar, mas não é de nossa cultura, não é humano. Sabe com quem está falando?
Acho que não resta duvida que uma das razões para a tensão social e a consequente violência que vivemos está nos privilégios sem sentido que nos são atávicas e estão por todas as partes deste Brasil. Sabe com quem está falando?
Tem privilégio com sentido? Tem, o merecido. A definição de privilégio justo é que é a questão. No salve se quem puder fica difícil.

Qual linha não vale a pena cruzar começa nas situações mais básicas do convívio social. Óbvio que a regra mais básica em qualquer sociedade ou agrupamento é a sobrevivência individual, se não fosse não nos juntaríamos, seríamos eremitas, viveríamos isolados, cada um em seu canto, mas a história da humanidade prova que não é assim, que  não funciona, que a única saída é o "unidos venceremos". Aliás esta é a regra geral das selvas, unidos venceremos, ou 'Unido eu sobrevivo'.
Quem deve dar exemplo é quem tem o privilégio de ter algum poder, independente da origem, área social ou de atuação.

Para mim a tragédia que estamos vivendo tem como base a completa falta de noção de onde começam e terminam nossos direitos e deveres, onde e quando podemos tirar proveito para si próprio, quais são os limites de nossos privilégios. 

Nelson Rodrigues falou que temos complexo de vira-lata, no caso, dito na década de 50 e sobre futebol. Parafraseando, é possível dizer que temos um complexo de vira-lata em relação ao sentimento de culpa por sermos pobres e mal sucedidos, sim mal sucedidos. Ter o Brasil que temos com o potencial que está terra tem? 
Nossa solução sempre foi o jeitinho brasileiro, que até um determinado momento foi de fato uma solução, mas ai perdemos o limite e virou um salve-se quem puder. 
Salve-se quem puder não é solução, nem para os privilegiados. Muito pelo contrário, salve-se quem puder é de uma burrice extrema, é o que nos mata.

privilégio
substantivo masculino
1.
direito, vantagem, prerrogativa, válidos apenas para um indivíduo ou um grupo, em detrimento da maioria; apanágio, regalia.

proveito
1.
utilidade, benefício, resultado positivo propiciado por (uma ação, um objeto etc.); serventia.
"a pesquisa não teve nenhum p."

2.
vantagem que se tira de alguma coisa; ganho, lucro.
"dirige as coisas públicas visando o p. pessoal"

Nenhum comentário:

Postar um comentário