O fuzuê naquele começo de noite na ponta da praia chamava a atenção da multidão que caminhava pelo calçadão. O pequeno grupo de amigos seguia seu caminho conversando, mas cada vez mais curiosos com todo aquele alvoroço. Seguiam em suas inconsequentes conversas sobre futebol, prestando atenção, mas despreocupados em entender os que passavam rindo ou irritados, nos casais brigando, e nos bêbados com suas latas de cerveja na mão tirando sarro. Um dos garotos ouviu e chamou atenção, "deve ser o Bolsonaro", os outros mostraram se uns incrédulos, outros desinteressados. Chegaram à tumultuada praça frente ao mar e foram avisados por um estranho que passava "ele está lá" e caminharam para ver a cara do sujeito de perto. Em torno de Bolsonaro a bagunça era generalizada, com seus seguidores indo um a um num empurra-empurra para ver quem conseguia tirar uma selfie. Mais distante, lá no calçadão e nos carros que passavam, urros de todos tipos, a maioria ofensivos gritados pelos apoiadores e os contra. Para evitar que a situação descambasse numa pancadaria generalizada alguns poucos PMs que esperavam por reforço e os seguranças da autoridade. Olhando a distância o grupo de amigos parou a caminhada.
Um dos garotos, num puro ato de adolescência, avisou aos amigos que ia lá fazer uma foto com ele. Eles não acreditaram, tiraram sarro tanto pela coragem quando pela imprudência, o que incendiou mais ainda a bravata juvenil. Entre risos e gritos de "não vai" dos amigos que se perderam no meio da gritaria generalizada do povo, foi abrindo caminho sendo filmado por um dos amigos. Incrédulo, a multidão foi como que se abrindo para ele, e não só conseguiu chegar perto, como segurar no braço de Bolsonaro, que se virou, deu um abraço sorridente no garoto. Estava feito, voltaram triunfantes para os amigos que já não mostravam a mesma expressão inconsequente e jovial, mas um desconserto explícito.
Mão no celular, dedos ágeis, o filme foi imediatamente publicado nas redes sociais, incluindo pai, mãe, irmã, tios, primos, avós. A reação da família foi imediata por ele ter se deixado filmar sorrindo com Bolsonaro, mas não pela publicação do filme em si. "Foi só uma recordação" respondeu ele cheio de kkkkkks.
Interessante a irritação "por ele ter se deixado filmar com Bolsonaro", e não que ele, o filho, irmão, neto, primo, tenha ido até alguém com história tão complicada, para dizer o mínimo, com sorriso aberto.
O que parece difícil de entender é que dependendo da foto ou filme, dependendo da "recordação", não deve ser exposta a público, aliás, não deve sequer ser registrada. Mais ainda, não deve sequer ser pensada. No caso, foto ou filme com Bolsonaro, que é o caso aqui, além de inconveniente, irritante, ou desagradável, para uns, embute um sério risco social no meio desta sociedade profundamente dividida. Se adultos esclarecidos têm dificuldade de lidar com esta realidade conflituosa, imagine só um adolescente. Aliás, a bem dizer e a bem da verdade, o mesmo se aplica caso fosse uma foto ou filme com Lula ou outro qualquer político. Se pode achar que com este ou aquele é inaceitável, e até pode ser de fato, mas diz o bom senso, e porque não dizer a inteligência, que neste momento não se deve chegar próximo de qualquer figura pública para "engrandecer" a imagem própria, leia-se "selfie". Neste tsunami que vivemos não importa o quão bonzinho o sujeito possa parecer ou de fato seja, guardar distância segura é, ou deveria ser, inteligente.
O mar não está para peixe, mas este velho ditado não faz o menor sentido para um adolescente, para quem muito mais divertido que as consequências é o risco, o transgredir, o impressionar a turma, não importa como.
A histeria pode fazer com que uma inconsequência se transforme em condenação a morte social, ou cancelamento como dizem hoje. Quem disse que a caça as bruxas terminou?
O garoto adolescente, no meio das falas enfurecidas contra a loucura que vivemos na pandemia, de saco cheio de ser obrigado a ficar em casa ouvindo as mesmas histórias, as mesmas verdades definitivas, e principalmente por ser adolescente, portanto do contra, começou a duvidar, e com isto irritar os mais próximos jogando pitadas favoráveis a Bolsonaro e sua turma. Quanto mais enfurecida ficavam, mais divertida e funcional começaram a ficar suas palavras "acho ótimo". Como psicologia barata, ele se fazia notar, chamava a atenção, todo mundo embarcou no seu jogo adolescente. Tirar foto com o próprio Bolsonaro? Cheque mate!
E as portas amigas foram sendo fechadas em silêncio. "Com meu filho ele não anda". Na década de 60 havia o "meu filho não convive com filho de mulher desquitada". Na década de 30 foi pior ainda, e as reais consequências da aceitação coletiva da intransigência absurda só veio a tona em 1945. A eterna caça às bruxas. As razões não interessam, ele fez a besteira então é culpado e deve ser punido, ponto final. Ponto final?
Dizem os bons advogados que mais vale um bom acordo que uma briga. Não resta dúvida que mais vale uma boa conversa, e conversa pressupõe ouvir a outra parte, principalmente quando esta está claramente errada.
Acho interessante a definição de ideologia como um discurso simples, direto, sem fundamento, que cola imediatamente em uma vasta população. Ideologia é prato cheio para pessoas pouco vividas ou imaturas, de pensamento simplório por assim dizer, delícia para lambuzar qualquer jovem, só que mancha a roupa e ou não sai mais ou dá uma trabalheira para sair. Pior mesmo é quem acredita que a mancha ideológica é uma marca de integridade e inteligência.
De volta a São Paulo o garoto encontra seus amigos. Alguns não aparecem, nem dão notícias. A conversa demora para engrenar, as mesmas besteiras adolescentes de sempre. Sobre o filme ninguém fala ou falará. Está morto e enterrado.
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