Eu não queria ir lá. Estou cansado de museus, eventos e exposições sobre bicicletas; o que tinha que ver já vi (que besteira!), quero pedalar, me sentir livre. E acabei sendo levado para a exposição Cycling the City no Museum of the City of New York que conta a história da bicicleta em NY. Nunca havia ouvido falar deste museu, um casarão discreto na 5th Av. uns 15 quarteirões acima do Metropolitan. Na entrada, vazio, só os funcionários da recepção, bilheteria e loja, e mais ninguém. São três andares, o primeiro vencido por uma bela escada que termina nas mesas da pequena lanchonete. Três gatos pingados. Os outros dois andares só por elevador ou pelas escadas de emergência. Estranho. A exposição sobre bicicletas está no segundo andar, subo pelas escadas de emergência. As exposições, pequenas e concentradas, são sobre a história dos movimentos gay, cultural e trabalhista de NY, cada uma em uma sala. Pequeno acervo, de ótima qualidade; deixam seu recado, vão direto ao ponto, sensibilizam. Noutra sala a das bicicletas.
Do corredor vi as bicicletas azuis da Citi Bike, entro e descubro que servem para pedalar e acionar um game projetado na parede. “Deus, outra exposição sobre bicicletas?” Volto para a sala de entrada e olho com mais cuidados os posters grudados na parede esquerda. Dali posso ver as bicicletas históricas que estão expostas no centro da sala principal. Com certa má vontade entro e começo a olhar a exposição em si. Aos poucos minha má vontade vai sendo vencida por consistentes textos, fotos e colocação de contextos. No fundo mais uma projeção de filmes históricos chama a atenção pela inteligência como foi montado. A exposição Clycing the city não só me agrada como creio que seja a melhor que tenha visto.
Na quase na saída da exposição “The voice of the Village” duas caixas acústicas, uma de cada lado da porta do espaço central de fotos toca The Wind Cries Mary do Hendrix na versão original. Já ouvira Dilan e outros de época, anos 60. Lembro de um documentário quando George Harrison diz que foi para São Francisco para conhecer o movimento Flower Power e que achou um horror. A voz de NY naquela época foi outra, muito mais ligada à realidade.
Na loja do MOMA no Soho um monte de besteirada para alegrar adultos e incautos alguns designs realmente interessantes. No subsolo brinquedos para crianças e livros; lá vou eu. Na pilha de livros um sobre a história completa de Woodstock, o de 1969 é lógico. Folheio, descubro que desconheço vários artistas que se apresentaram. Quando lançaram o disco em vinil triplo e depois o filme o sobre festival nem sequer citavam a apresentação de Mountain. Vim a descobrir muitos anos depois que o festival não se resumiu ao que já conhecia quando foram lançados os dois outros discos sobre Woodstock, que no fim das contas gerou 5 LPs, mesmo assim sem todos que tocaram nos três dias que quase mudaram o mundo. No livro estão os que deveriam, mas não se apresentaram: Bob Dilan, Led Zeppeling, Iron Butterfly, The Doors, Jeff Beck Group, Roy Rogers, sim, o cowlboy, que deveria fechar o festival, e outros mais. Folheando o livro cheguei as páginas do dia seguinte, do lixo deixado para trás, das contas não pagas.... Durante décadas Woodstock foi só a utopia, um norte, a bem da verdade, desvio magnético de bússola.
Ironia do destino saio da loja MOMA e dou de cara com uma senhora já velha de cabelos brancos longos, escorridos e mal tratados, roupas grudadas ao corpo muito magro e duro, tingidas em cores primárias, tecido de algodão torcido, amarrado, fervido em várias etapas, Flower Power total, parada na frente de uma vitrine, cara mal humorada, camiseta estampada “Woodstock 1969” em letras garrafais sobre os peitos murchos e sem sutiã... Ela entra na loja de sapatos esportivos sofisticados pisando leve com seus Crocks e meias também coloridas, andar soberbo, olha tudo com interesse, passa por uma mulher de sua idade, gente que viveu aqueles momentos incríveis da história e houve um comentário simpático sobre as lembranças que as roupas e o estampado no peito trazem, mas passa batido, sem mudar o olhar perdido, a mesma cara dura e mal humorada, talvez não tanto por ter olhar fixo na próxima prateleira de tênis novo, cheios de estilo, de tecnologia, quase opacos, mais por puro desprezo pelos que estão a sua volta. A senhora que tentou entrar em contato com a velha hippie ao receber o desprezo continua sorrindo, desvia seu olhar para mim que estou de frente, dá com os ombros, e move os lábios falando algo que não posso entender no meio da movimentada loja, mas que posso imaginar o que seja. A velha hippie examina tênis por tênis, alguns tira da prateleira, roda toda loja, parece não encontrar nada que lhe agrade. Passa por uma menina toda tatuada, o que é correspondente ao que ela teria sido naquela idade, mas a distância de pensamentos das duas está a um ano luz, qualquer um naquela balburdia de desejos e compras pode imaginar.
Chego no hotel e tenho que fazer as malas. A quantidade de papeis e sacos plásticos que tenho que descartar das compras é absurda. Imediatamente lembro da foto da montanha de lixo juntada dias depois do fim do festival de Woodstock, toneladas mais toneladas de lixo revolvido com o barro dos dias de chuva. Aquilo foi para toda uma geração um sonho, três dias utópicos, paz, música e amor; o resto é resto. Deu tudo certo, pelo menos no imaginário de quem não esteve por lá e só viu fotos, só ouviu as músicas.
Venderam o sonho, se aproveitaram da diversão, fizeram milhões, bilhões por anos, lucraram políticos e ideológicos... A menina tatuada tem o celular na mão, mas conversa com o namorado. Aquilo deu nisto. O Museu da Cidade de Nova Iorque está quase vazio. Conta como foram as coisas de fato, além do quanto mais louco melhor ou da tatuagem e celular individualistas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário