O centro de qualquer cidade é seu coração, sua alma, sua memória. Para transformar qualquer cidade para o bem, para vida, para um futuro melhor, comece pelo centro.
A memória da cidade é crucial para a saúde pública, dando lhe referências sobre sua origem, história, sua vida. Está provado que a preservação da memória tem íntima relação com a diminuição da violência.
São Paulo:
Sou ainda de uma época quando praticamente tudo acontecia no Centro de São Paulo, a cidade da garoa. Já andando com as próprias pernas lembro que o povo todo lotava as ruas vestido de maneira formal, homens de casaco e gravata, mulheres com saias, casaquinhos e bolsas, terra da garoa, guardas-chuvas nos braços, falsas bengalas batendo a ponta no chão, sapatos lustrados, cuidado e formalidade no trato com o próximo, mesmo os mais xucros. Eu ia sendo levado pelas mãos firmes de Conceição e minha mãe no meio das pernas ambulantes do povo. Olhava para cima, para todos os lados, para todas as gentes, homens e mulheres, todos carros e ônibus, toda confusão de quem estava a trabalho ou fazendo compras de algo que só se encontrava por lá.
Por muitos anos não passei nem perto do Centro. Quando voltei foi uma descoberta mágica. Já não era a mesma formalidade, mas o povo ainda circulava com certa cerimônia, mesmo que a maioria já não vestisse casaco e a gravata ou tivesse os sapatos tão lustrados.
Meu pai trabalhava na rua Boa Vista. Várias vezes fui pedalando vê-lo. 1978. O Centro era seguro, limpo, o único problema eram os batedores de carteira, uns poucos e hábeis. É difícil acreditar que estacionava a bicicleta presa num poste de placa de sinalização com uma corrente frágil, destas que se corta com alicate, na esquina da rua Boa Vista com Ladeira do Porto Geral. A abandonava ali sem a menor preocupação e quando voltava lá estava ela, intacta. Iá. Eu entreva e saía do Centro, sempre pelo mesmo caminho, não me interessava em rodar pelas suas ruas, praças e becos, mas não tardaria muito.
A ótima relação com o Centro foi longa e muito prazerosa. Ir ao Teatro Municipal, comprar ferramentas na Florêncio de Abreu, eletrônicas na Santa Efigênia, ver a missa com seus cantos gregorianos na São Bento, ter vivenciado as grandes manifestações da 'Diretas Já!', ficar olhando a floresta sobre o Edifício Matarazzo, um expresso no Café Floresta do Edifício Copan, ir olhar a vitrine da Casa Aerobras, minha paixão...
E foi deteriorando, deteriorando. Perdi o contato com o Teatro Municipal, a Praça da Sé começou a feder, a casa Fretin fechou, outros pontos de referência foram fechando, outros surgindo numa tentativa de reviver os velhos tempos de glória. A Estação da Luz passou por reforma, mas o projeto para seu entorno foi um erro grosseiro. O Edifício Ester perdeu seu brilho, ninguém faz ideia de sua relevância arquitetônica. A Livraria Francesa continua lá, felizmente, mas cercada de vendedores ambulantes, pobreza degradante e violência. Enfim, uma tristeza.
Tristeza mesmo tive quando fui pedalando até o Bicicultura (creio que em 2013) que ocorreu em parte no antigo Cine Olido, hoje um centro cultural. Desci pela rua Dom José de Barros inteirinha pixada, suja, assustadora. Quase na esquina da av. São João tirei os olhos da triste degradação das fachadas e lixo acumulado na rua, levantei a cabeça dei de cara com o Edifício Wilton Paes de Almeida pixado de alto a baixo nos seus 24 andares, um dos patrimônios históricos da arquitetura modernista da cidade e do Brasil, com uma aparência nojenta, um lixo. O Centro se encontrava largado, abandonado a própria sorte, estraçalhado. Deprimente é pouco. Uns anos depois o Wilton Paes veio abaixo consumido pelo fogo da irresponsabilidade, burrice e mediocridade generalizada onde todos, sem exceção, somos culpados. Poderia ter sido um ponto de exclamação, um basta, mas...
Faz uns dias juntei coragem e fui pedalar no Centro de São Paulo. Eu amo aquilo. Estou cansado de ouvir relatos sobre insegurança, moradores de rua e muita sujeira por lá. O abandono por 4 anos de políticas erradas do PT assinadas por Haddad e sua tropa fez um estrago impressionante, coisa de palco de guerra civil. Ainda tivemos a gravíssima recessão brasileira ("...2+2 pode ou não ser 4"), mesmo assim confesso que passados dois anos desta nova administração esperava encontrar uma situação melhor. Sei que a reversão do estrago vai demorar anos, talvez décadas, mesmo assim tive a sensação que muito pouco foi feito para recuperar o coração e alma paulistana.
Cheguei a Sé e dei com um grupo de bolivianos com roupas típicas realizando uma bela dança numa escadaria ao lado da Catedral da Sé; sob um fortíssimo cheiro nauseante de urina e fezes humanas. Impossível de ficar ali. A Praça da Sé, pelo menos o espaço onde se pode sentir alguma segurança, continua um depósito do que resta de seres humanos sentados, deitados, caminhando errantes ou cambaleantes por todas partes. Cruzei a praça com cuidado, passei pelo Pátio do Colégio, e fiquei impressionado com a quantidade de moradores de rua deitados nas calçadas da rua Boa Vista. Era um domingo de sol e não fazia tanto calor, dia ideal para pedalar, mesmo assim vi poucos ciclistas e pedestres circulando. Praça Patriarca outra moradia. Viaduto do Chá vazio. Teatro Municipal em silêncio. Biblioteca e Praça Dom José Gaspar ali, bares e restaurantes fechados. Av. São Luís, av. Ipiranga, Edifício Copan, um excelente expresso tirado pela Cecília no Café Floresta, e tchau com uma grande tristeza no coração. Mesmo as ciclofaixas de domingo que cruzavam o Centro e traziam ciclistas desapareceu em boa parte.
O Centro de São Paulo vale uma visita. Não só vale; nós devemos uma visita por que ele somos nós. Não se conhece cidade sadia e feliz que não tenha seu Centro tratado com respeito e carinho. Aliás auto respeito.
A memória da cidade é crucial para a saúde pública, dando lhe referências sobre sua origem, história, sua vida. Está provado que a preservação da memória tem íntima relação com a diminuição da violência.
São Paulo:
Sou ainda de uma época quando praticamente tudo acontecia no Centro de São Paulo, a cidade da garoa. Já andando com as próprias pernas lembro que o povo todo lotava as ruas vestido de maneira formal, homens de casaco e gravata, mulheres com saias, casaquinhos e bolsas, terra da garoa, guardas-chuvas nos braços, falsas bengalas batendo a ponta no chão, sapatos lustrados, cuidado e formalidade no trato com o próximo, mesmo os mais xucros. Eu ia sendo levado pelas mãos firmes de Conceição e minha mãe no meio das pernas ambulantes do povo. Olhava para cima, para todos os lados, para todas as gentes, homens e mulheres, todos carros e ônibus, toda confusão de quem estava a trabalho ou fazendo compras de algo que só se encontrava por lá.
Por muitos anos não passei nem perto do Centro. Quando voltei foi uma descoberta mágica. Já não era a mesma formalidade, mas o povo ainda circulava com certa cerimônia, mesmo que a maioria já não vestisse casaco e a gravata ou tivesse os sapatos tão lustrados.
Meu pai trabalhava na rua Boa Vista. Várias vezes fui pedalando vê-lo. 1978. O Centro era seguro, limpo, o único problema eram os batedores de carteira, uns poucos e hábeis. É difícil acreditar que estacionava a bicicleta presa num poste de placa de sinalização com uma corrente frágil, destas que se corta com alicate, na esquina da rua Boa Vista com Ladeira do Porto Geral. A abandonava ali sem a menor preocupação e quando voltava lá estava ela, intacta. Iá. Eu entreva e saía do Centro, sempre pelo mesmo caminho, não me interessava em rodar pelas suas ruas, praças e becos, mas não tardaria muito.
A ótima relação com o Centro foi longa e muito prazerosa. Ir ao Teatro Municipal, comprar ferramentas na Florêncio de Abreu, eletrônicas na Santa Efigênia, ver a missa com seus cantos gregorianos na São Bento, ter vivenciado as grandes manifestações da 'Diretas Já!', ficar olhando a floresta sobre o Edifício Matarazzo, um expresso no Café Floresta do Edifício Copan, ir olhar a vitrine da Casa Aerobras, minha paixão...
E foi deteriorando, deteriorando. Perdi o contato com o Teatro Municipal, a Praça da Sé começou a feder, a casa Fretin fechou, outros pontos de referência foram fechando, outros surgindo numa tentativa de reviver os velhos tempos de glória. A Estação da Luz passou por reforma, mas o projeto para seu entorno foi um erro grosseiro. O Edifício Ester perdeu seu brilho, ninguém faz ideia de sua relevância arquitetônica. A Livraria Francesa continua lá, felizmente, mas cercada de vendedores ambulantes, pobreza degradante e violência. Enfim, uma tristeza.
Tristeza mesmo tive quando fui pedalando até o Bicicultura (creio que em 2013) que ocorreu em parte no antigo Cine Olido, hoje um centro cultural. Desci pela rua Dom José de Barros inteirinha pixada, suja, assustadora. Quase na esquina da av. São João tirei os olhos da triste degradação das fachadas e lixo acumulado na rua, levantei a cabeça dei de cara com o Edifício Wilton Paes de Almeida pixado de alto a baixo nos seus 24 andares, um dos patrimônios históricos da arquitetura modernista da cidade e do Brasil, com uma aparência nojenta, um lixo. O Centro se encontrava largado, abandonado a própria sorte, estraçalhado. Deprimente é pouco. Uns anos depois o Wilton Paes veio abaixo consumido pelo fogo da irresponsabilidade, burrice e mediocridade generalizada onde todos, sem exceção, somos culpados. Poderia ter sido um ponto de exclamação, um basta, mas...
Faz uns dias juntei coragem e fui pedalar no Centro de São Paulo. Eu amo aquilo. Estou cansado de ouvir relatos sobre insegurança, moradores de rua e muita sujeira por lá. O abandono por 4 anos de políticas erradas do PT assinadas por Haddad e sua tropa fez um estrago impressionante, coisa de palco de guerra civil. Ainda tivemos a gravíssima recessão brasileira ("...2+2 pode ou não ser 4"), mesmo assim confesso que passados dois anos desta nova administração esperava encontrar uma situação melhor. Sei que a reversão do estrago vai demorar anos, talvez décadas, mesmo assim tive a sensação que muito pouco foi feito para recuperar o coração e alma paulistana.
Cheguei a Sé e dei com um grupo de bolivianos com roupas típicas realizando uma bela dança numa escadaria ao lado da Catedral da Sé; sob um fortíssimo cheiro nauseante de urina e fezes humanas. Impossível de ficar ali. A Praça da Sé, pelo menos o espaço onde se pode sentir alguma segurança, continua um depósito do que resta de seres humanos sentados, deitados, caminhando errantes ou cambaleantes por todas partes. Cruzei a praça com cuidado, passei pelo Pátio do Colégio, e fiquei impressionado com a quantidade de moradores de rua deitados nas calçadas da rua Boa Vista. Era um domingo de sol e não fazia tanto calor, dia ideal para pedalar, mesmo assim vi poucos ciclistas e pedestres circulando. Praça Patriarca outra moradia. Viaduto do Chá vazio. Teatro Municipal em silêncio. Biblioteca e Praça Dom José Gaspar ali, bares e restaurantes fechados. Av. São Luís, av. Ipiranga, Edifício Copan, um excelente expresso tirado pela Cecília no Café Floresta, e tchau com uma grande tristeza no coração. Mesmo as ciclofaixas de domingo que cruzavam o Centro e traziam ciclistas desapareceu em boa parte.
O Centro de São Paulo vale uma visita. Não só vale; nós devemos uma visita por que ele somos nós. Não se conhece cidade sadia e feliz que não tenha seu Centro tratado com respeito e carinho. Aliás auto respeito.
Nenhum comentário:
Postar um comentário