quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Adolescente preparado?

Filhos, porque tê-los? Já que os teve, como educá-los? 
Quem vai ser o futuro cidadão preparado para a realidade do Brasil? E para a realidade do mundo? 

O tio aguardava do lado de fora ansioso. Os dois adolescentes saíram junto com o pai da estação de metrô. Estão grandes, quase irreconhecíveis para quem não os via há tempo. Por mais que se tenha notícias sempre resta uma curiosidade sobre como estão, como vai a aborrescência, algo a mais que fotos e discursos de pai não responde. Abraços, e todos saem caminhando pelas ruas. Como primeira impressão, o mais novo é expansivo, o mais velho quieto e muito observador. Como todo encontro depois de muito tempo, as primeiras conversas são o que de mais básico pode haver, respostas desprendidas do mais jovem e curtas, inteligentes e assertivas do mais velho. Não demora muito para o tio que os recebe sentir-se mais firme, sem medo de ir além e até poder deixá-los emburrados ou acabrunhados, e o encontro torna-se mais rico. Fica claro que estes dois meninos vindos de dois extremos da grande cidade são bem articulados e estão muito mais preparados e amadurecidos para a vida que os sobrinhos e netos que vivem em bairros ricos e que ele vê com frequência. Também fica claro que não se sentem muito a vontade no meio desta gente de classe média alta, conscientes que são da periferia, que se vestem como periferia, que pertencem a periferia; têm consciência plena desta verdade intrínseca. O tio sabe bem que os que passam caminhando por aquela rua pretenciosa, que por ser considerada chique país afora não passa de um me engana que eu gosto, que a maioria daqueles são pretenciosos e nada mais. Os dois meninos são consistentes, altivos, cada uma a seu jeito natural, zero de soberba suburbana, simplesmente são, nada mais, não sabem que mais fortes e consistentes que a maioria que os cerca.
Os quatro, pai, tio e os dois meninos, param na frente de um supermercado gastronômico onde a variedade de geleias é grande e o preço é bom. O tio pede para eles entrarem com ele. Ali sim é a elite da elite, em vários sentidos. Os corredores estão lotados de compradores e de uma impressionante variedade de mercadorias, deliciosas, como não se vê em outro canto da cidade, do estado e do país; coisa do outro mundo. Dois passos dentro e aí cai sobre os dois meninos o peso da diferença social, um cruza os braços e para de sorrir, o outro olha perdido para baixo, sinal de constrangimento que até então não lhes transparecia. O tio contorna a situação e fica mais admirado ainda com a capacidade de percepção que os jovens têm da situação. Mesmo sem convívio com as realidades da cidade que não lhes pertence, os dois foram plenamente capazes de captar a diferença entre os que gostariam de ser caminhando na rua pretensamente chique e os que são ricos, financeiro e cultural, que estão displicentemente ali comprando. A verdade não é tão sutil, mesmo assim engana os desavisados e os incapazes, a bem da verdade a imensa maioria. Me engana que eu gosto e compro faz parte do jogo social. A eles não. Pelo sim ou pelo não, fica claro que estão preparados para a vida; crus ainda, inexperientes, pouco vivenciados, mas alertas, preparados.   


A pequena e pacata cidade do interior paulista vive de sua produção agrícola, hortifruti granjeiros. Tem um comércio simples para atender uma população de pensamentos cotidianos, sem grandes delongas. Quer ir mais além vai para a cidade grande próxima, que não é grande, mas média e rica. 
"Eu gosto daqui, isto aqui é o melhor lugar do mundo, não quero sair daqui", foi a resposta certeira quando perguntaram a ela o que queria fazer quando chegasse aos 18, para onde queria ir e estudar. Ficou claro que a pergunta foi recebida como um ataque frontal e mortal à segurança da barra da saia da mãe, do povo e a cidade que a cerca, que a sua imaturidade e desconhecimento do mundo a levou a acreditar que a condenaria a ser jogada naquele mundo hostil que ela só via da janela fechada do carro em movimento dirigido pelos pais, que seguem pelos mesmos eternos caminhos passando veloz. Quando entram na cidade grande seguem avisos para ela e a irmã para não abrir a janela por causa dos assaltos. Mundo hostil, malvado lá fora, perigo! A cidade de interior onde vivem é tranquila, mas, como boa classe média assustada, moram num condomínio murado e com segurança 24 horas. Brincaram lá, têm suas amigas lá, algumas da escola também murada e com segurança. Os que vivem na casa ao lado? Quem serão? Quando saem para o mundo passeiam em shopping ou vão ao clube, todos com segurança. "O que você pretende fazer no futuro" é uma pergunta sem sentido para ela porque tudo que ela conhece está lá e ponto final, o que precisa mais. Seus pais têm respostas para tudo, mesmo que todas as respostas estejam baseadas naquela realidade limitada, a bem dizer limitadíssima, tacanha. O resto se vê pela TV ou internet.



O mundo se abre para aquela garota classe média de família tradicional. Conhece e se enamora de um americano, filho de fazendeiros no centro norte dos Estados Unidos, cidade pequena, 5 mil habitantes perdidos no meio do nada. "Devem ser ricos, são americanos", doce ilusão. Durante os breves dias que ele está de férias por aqui não param de se ver. Ele é a abertura do mundo para ela, de uma certa forma uma resposta a todos os questionamentos que esta nossa vida confusa dos adolescentes traz no dia a dia. O imaginário é lindo, inquestionável, seguro; a realidade cruel, eles têm a resposta certa e definição para todos males. 
Quando ele volta ao seu mundo caipira americano, verdadeiro redneck (pescoço vermelho), as trocas de mensagens não param e ele diz carinhosamente que vai voltar para vê-la e aprofundar o namoro. Os adultos sentem forte cheiro de cucaracha no ar, afinal, não passamos disto para eles, americanos.
Com cuidado a família pergunta como vai ser a vinda dele. A primeira e direta resposta é que "ele vai ficar em casa e no meu quarto", e não há discussão. A família ri da tragédia que se avizinha, e não pode ter outra reação, mas deixa rolar para não piorar a situação e para ver até onda vai a conversa. Então vai aparecendo como tudo acontecerá.  
- Estou pagando coisas aqui. Quando ele chegar ele me paga.
- Como você sabe que ele vai pagar? 
- Eu conheço, ele é um cara legal, vai pagar.
- Como e quando ele vem?
- Quando mamãe for viajar ele chega.
Silêncio. 
(E você vai ficar só com ele no seu quarto sem ninguém em casa? Ou seja, o bonitinho redneck vai comer a cucaracha e voltar feliz da vida deixando um cucarachinha no Brasil?)
- Quem vai pagar a passagem?
- A família diz que não paga e ele fez uns trabalhos pagar a passagem.
- Ele só tem dinheiro para a passagem? E os custos dele aqui no Brasil, quem paga?
- Eu pago, depois ele me devolve. Tenho meu dinheiro (da mesada, é claro).   
O clima meio que azedou e a conversa naquele instante não foi mais para a frente. Todos precisam de um tempo para pensar como ajeitar tudo para que não vire um desastre. Nem precisam. 
Dias depois ela está desolada, ele não vem mais, o avô morreu, diz a família, e ele tem que ficar lá para as cerimônias. Ela manda mensagens amorosas. 
Passam uns dias e com a insistência dela ele começa a mostrar quem realmente é. Chegam mensagens irritadas, nada carinhosas. Pelo menos não chamou de cucaracha. O triste, mas triste mesmo, é que se chamasse ela não entenderia. 
Rio de Janeiro de novo. Praia. E aparece novo gringo no pedaço, agora um dito austríaco. Lá vai ela de novo, cai de novo na conversa, desta vez uma história mais complicada. Eles adoram cucarachas. A tia, advogada esperta, fuça na internet e não acha qualquer rastro do austríaco. Tudo leva a crer que não é boa coisa, aliás, tudo leva a crer que é coisa ruim para valer. 
A família se reúne para dar um basta. Está claro que a menina, que já é uma mulher, não tem nenhum preparo para a vida, para perceber o básico do básico e evitar ser tapeada, para dizer o mínimo. Vão todos para nova conversa, ela ouve cabeça baixa, olhar perdido, até que...
- Esquece estudar fora do Brasil. Você provou que não tem o menor preparo para ficar sozinha longe da família... e sem que se terminasse a conversa ela se levanta com cara de fera e sai a passos largos. Na porta para, olha para trás e diz a todos. 
- Vocês não sabem nada! São uns idiotas.   

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