quinta-feira, 3 de agosto de 2023

A memória mente, e como mente

Fórum do Leito
O Estado de São Paulo

Não sei onde foi parar uma bolsa plástica com meu corta-vento. Minha memória criou uma narrativa infundada que eu fui roubado dentro de um supermercado, o que se provou pelas imagens de segurança que não aconteceu. Ser traído pela própria memória é fato corriqueiro a todo ser humano. A imagem estabelecida sobre certos fatos pode acabar sendo uma criação, tal qual o famoso dito "quem conta um conto aumenta um ponto"; ou "esquece um ponto". A única forma de se chegar a verdade é através de uma análise fria dos fatos, sem vítimas ou culpados pré-estabelecidos. Este é um ensinamento que se provou ser o único caminho para alcançar a redução de erros, o melhor e mais positivo resultado possível. Infelizmente nós brasileiros não somos educados para a busca dos fatos inquestionáveis. Trabalhei com trânsito e venho há muito pedindo (talvez da maneira errada) que o Brasil melhore as condições de trabalho de peritos e legistas, em todas áreas e de todas as espécies. Não dá para continuar cometendo os erros primários que cometemos neste país. Só se chega a verdade buscando a verdade, não aceitando uma verdade. A negação da pesquisa IBGE está aí para provar. Temos absolutamente tudo para um futuro brilhante, que nunca chega porque insistimos em acreditar piamente nas traições de nossos pensamentos.


E a bolsa plástica sumiu.
Quando fui colocar as compras na mochila percebi que minha bolsa plástica laranja não estava lá. Olhei para o chão e nada. Saí pelo supermercado atrás dela e não a encontrei. Avisei a gerente sobre a perda e fui para casa com a certeza que tinha entrado no supermercado com ela dentro da mochila, que tinha passado a mão pelo lado dela para pegar uma outra sacola plástica para colocar as compras. Certeza que só tinha aberto o zíper da mochila dentro do supermercado, que ela estava lá dentro, que eu a tinha visto e tocado. Óbvio que achei que alguém deveria ter aberto o zíper e tirado a bolsa sem que eu percebesse. Mas como? Como não percebi? Sei por onde andei no supermercado, não me lembro de ninguém chegando perto. Não fiquei parado para dar tempo da mochila ser aberta, o saco puxado sem fazer barulho, e a mochila ser fechada sem que eu percebesse, mas só pode ter sido lá.
 
Em casa revi tudo que havia feito antes de entrar no supermercado. A última vez que mexi na bolsa foi no consultório de minha dermatologista, onde coloquei a receita dentro da bolsa laranja junto com meu corta-vento também laranja, e ali fechei o zíper, eu me lembro. Mandei mensagem perguntando se estava lá. Resposta: não. Repassei cada movimento depois que paguei a consulta, relembrei cada vez que toquei na mochila, o momento que cheguei no estacionamento, soltei a tranca da bicicleta, lembro de colocá-la na bolsinha lateral da mochila sem abrir o zíper, de sair da garagem, pedalar um pouco, parar para ligar o backlight preso na mochila e o zíper estava fechado, lembro de quando ainda na ciclovia, quase chegando no supermercado, pegar na mochila para desligar o backlight e não ver o zíper aberto, e já no supermercado pegar na bolsa lateral da mochila a trava, trancar a bicicleta, e entrar no supermercado. Revi cada minuto sempre lembrando do zíper da mochila fechado. Por tudo que me vinha a mente a bolsa laranja não poderia ter caído no meio do caminho, o zíper estava fechado. Fazendo as compras no supermercado peguei a manteiga na geladeira, fiquei com ela na mão e percebi que precisaria de uma sacola para pegar todas as compras restantes, foi aí que eu abri o zíper da mochila, passei a mão pela lateral da bolsa laranja e puxei para fora a sacola, e fechei novamente o zíper com a bolsa laranja dentro. Se perdi a bolsa laranja com meu corta-vento só pode ter sido dentro do supermercado, não pode ter outra hipótese.

Dia seguinte voltei ao supermercado e conversei com a gerente e o chefe da segurança. Contei o ocorrido, avisei que já tinha checado as outras possibilidades, consultório, achados e perdidos da ciclovia (sim, há um) e pedi para checar as câmeras de segurança. Para ajudar, com o segurança refiz meus passos enquanto fazia as compras. Dei meu contato e ele disse que daria um retorno. Dois dias depois fui até lá e o segurança disse que viram com cuidado todas as câmeras, dando zoom em alguns momentos, e não viram nada, ninguém chegando perto, nem a bolsa caindo no chão. A bolsa laranja não foi roubada nem perdida dentro do supermercado como eu tinha certeza absoluta.

Não faço ideia do que aconteceu. O que me assusta, e muito, é minha memória me enganar assim. Não tenho uma boa memória, mas ela, a memória, não costuma criar uma narrativa tão detalhada e precisa. Ou cria e eu nunca aceitei a verdade, o que é pior ainda. 

Pensando bem, com calma, tentando ser racional, indo para o que a ciência afirma, sermos enganados pela memória é fato corriqueiro, há dados fartos e consistentes que provam isto. Funciona como um sistema de autoproteção, um ajuste para evitar maiores danos onde o cérebro cria versões sobre os acontecimentos para proteger as verdades estabelecidas pelo próprio cérebro ao longo da vida. Ele simplesmente apaga ou distorce certas informações e dados, criando uma verdade conveniente. 
A segurança da aviação trabalha exatamente para achar a verdade e não a versão destas distorções criadas pela mente. Vão atrás dos fatos, dos dados, de erros em cascata, que é o que normalmente acontece, a procura da causa sem se preocupar com vítimas e culpados. Tudo é direcionado para que o fato não ocorra de novo, que os problemas sejam sanados. O inverso do que vemos no Brasil onde os problemas mais bestas se repetem eternamente.

Trabalhei com trânsito num dos países mais violentos do planeta. Sem dados é impossível melhorar a situação. Daí o porque eu durante um bom tempo andei pedindo que se desse mais atenção e melhorasse a qualidade da perícia e dos legistas. Não dá para esperar horas para que a perícia apareça. 

PS.: dez dias depois de toda esta história, dez dias de certezas incertas sobre a desaparição da bolsa laranja plástica e minhas coisas, abro a mochila maior, coloco a mão no fundo e acho a receita. Conclusão: nunca aconteceu nada do que imaginei ter acontecido. A bolsa plástica está em outra mochila, a receita está onde coloquei, o corta vento deve estar em algum canto que ainda não sei onde... Só não me considero completamente demente porque sei que estas loucuras acontecem com todos. A mente literalmente mente.

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