O que tem lá?
É a nossa cidade
Minha, tua, dela, dele, deles
Ou deveria ser
Cá, lá, acolá, em todo lugar
A vista é maravilhosa. A rua dá exatamente de frente para ponte estaiada da Marginal Pinheiros que de lá vira o X da questão de todo o resto. A primeira foto foi logo na divisa entre o Real Parque "wanna be" e a favela Real Parque. Fiz um caminho completamente novo por dentro do bairro, por conta disto não me dei conta que lentamente os carros que passavam por mim foram mudando, ficado mais velhos, gastos, barulhentos, nem estranhei os edifícios mais simples, menos imponentes, de fachada classe média que começaram aparecer quando cheguei ao topo do morro. Uma menina bonita bateu o barulhento portão de ferro à minha direta e saiu rebolando sua mulatice por uma calçada mal cuidada e suja. Levantei os olhos, para cá e para lá, os edifícios padrão de moradia popular, parede branca, janelas retangulares de esquadrias metálicas e vidro alinhavam a rua até o ponto onde claramente começa a favela. Comunidade. A sujeira jogada na calçada fez a menina ir para o meio da rua e a frente de seu rebolado vi o horizonte de prédios ao longe, mas não ainda a ponte estaiada.
Um pouco a frente, no começo da descida, logo depois de uma construção improvisada em tijolos vazados sem pintura, pude ver o imenso X e seus tirantes. Não foi a primeira vez que entrei numa favela, talvez e espero que não seja a última. É sempre uma situação incomoda, cheia de alertas inconscientes que querem ou devem, não sei ao certo, colocar medo, evitar a imprudência, não sei se social. vital ou real. É minha cidade, é paisagem pública, por que não?
A vista aberta para a paisagem, o horizonte e o imenso X estaiado deveria fazer parte do deleite, da vida de todos, está protegida por uma grade de ferro que acompanha e desce para direita e esquerda da rua. Está lá, à esquerda escondida por alguns edifícios padrão moradia popular, todos iguais, todos sociais. A esquerda a bela vista é impedida a todos por barracos de madeira encostados e apoiados no gradil, um monte de peças de carro jogados no chão com um inconfundível motor de VW, mais barracos incompreensíveis, e assim vai rua abaixo para a direita.
Encostei a bicicleta no ferro velho de peças, dei uns passos cuidadosos sobre outro entulho jogado no chão, encaixei a máquina entre as barras de ferro da grade e tirei algumas fotos. Volto o corpo e vem a mim um adolescente mulato gordinho e bem vestido que olha para meu celular e para minha bicicleta, e só depois de investigar cuidadosamente o material olha nos meus olhos e pergunta se fazendo de bobo "Você mora aqui?".
- Não, não moro.
- Mora onde?
- Pinheiros.
- Tá fazendo o que (aqui)?
- Tirando umas fotos. A vista é linda, você não acha?
- Fotos do que?
- Da estaiada. Daqui ela é maravilhosa.
- Para que? Baixa os olhos para o celular e completa, - Tira boas fotos..., diz visivelmente desprezando a minha velha bicicleta.
- Organizar a cidade, organizar os bairros... e guardo tranquilamente o celular no bolso.
Tive a sensação que ele intimaria o celular, mas para minha surpresa não o fez mesmo seguindo em sua conversa boba malandra. Me despedi com um sorriso, peguei a bicicleta, perguntei a um senhor se tinha saída para a Decatlhon pela descida da direita ele me respondeu que sim, "só descer e virar na padaria" Desci confesso que rápido, um pouco preocupado com aquele menino que deixei para trás e com a possibilidade de ter que pedalar numa subida, por mais leve que fosse, onde seria presa fácil. Neuroses, neuroses, mas quando dei no asfalto próximo à Decathlon fiquei aliviado. Neuroses?
Foi igualzinho em Paraisópolis. Eu e Jonas fomos lá fazer uma vistoria técnica e logo apareceu um jovem com cara de bobo com a mesma conversa mole para saber o que o "alemão" está fazendo no pedaço. O chefe do pedaço podia ser visto a uns 100 metros olhando para nós e esperando informações do fronte.
Exatamente como em Paraisópolis se chega lá por ruas ricas, arborizadas, de verde cuidadosamente cuidado, ladeadas de edifícios luxuosos dos quais só se vê o muro, a portaria, os seguranças, e esticando o pescoço a torre que leva uma vontade sem fim de arranhar o céu. Amém. O inferno é logo ali ao lado. Bairro chique sem vida, sem pedestres, mães com bebes no carrinho, velhos de bengala caminhando, crianças brincando, ciclistas fazendo molecagens, duas cadeiras na porta de casa para jogar prosa fora. Sem vida a não ser pelos caros carros que saem de vez em quando e quando chegam em casa faz com quem imediatamente surja um segurança para garantir que o portão da paz se abra sem contratempos ou coisa pior. "Sempre acontece. Não soube do outro dia..."
Exatamente como em Paraisópolis, você cruza uma rua, anda mais um quarteirão e entra num outro planeta. Ruas cheias de gente caminhando, conversando, crianças brincando, como deveria ser e lá é. Construções simples para abrigar a cabeça do que vem do céu e esgoto a céu aberto. Ou é ali ou não é, não espaço para temores, o medo real mora ali, o medo faz parte, que se supere o medo e se leve a vida. Não há folga para olhar a paisagem.
- Se você tirar a Mega-Sena de Ano Novo o que vai fazer?
- Vou comprar dois carros, um para mim e minha filha com motorista, outro para meus seguranças.
(Conversa real com uma senhora moradora de uma favela, leia-se comunidade)
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