quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Primogênita invisível

Eu me lembro de ver o campinho de futebol no fundo do vale antes da construção da avenida. Lembro também vagamente da edícula de dois andares à esquerda de quem ia para os fundos do terreno, de onde se via o campinho. O estranho é que lembro bem da edícula para os homens, mas a memória não faz a passagem da fachada desta para a lateral da mesma. A imagem que tenho é descontínua.
Na minha época (anos 60) vivia lá, no segundo andar da edícula, uma criança com alguma deficiência grave, paralisia mental, é isto?
 
Também não me lembro direito como era a edícula. Afinal, a casa de vovó era bem mais interessante do que as edículas.
Sim, tinha Ana. Não sei o que ela tinha, mas não saia da cama, não andava, e tinha que ser assistida 24hs, mas conversava direitinho.
Não era criança, pois era a neta mais velha.
Ela era uma espécie de tabu familiar, que quase ninguém podia ver.
Por alguma razão que não me lembro qual, um dia eu fui vê-la. Ela me recebeu tão bem, que guardo dela a melhor das lembranças.
Nunca mais a vi, e até hoje não posso imaginar porque a segregavam a esse ponto. Nem de longe era uma figura grotesca ou apavorante. E olha que eu só tinha uns 10 anos (início da década de 50).
 
Imagina o que foi para o futuro da família, principalmente naquela época (provavelmente década de 20), ter nascido esta primogênita. E é fácil entender por que ela sempre foi escondida. Um especialista em pessoas com necessidades especiais afirma que a cidade de São Paulo tem hoje meio milhão de presidiários, seres humanos que não podem sair de casa, vivem escondidos, não são comentados, inexistem até para relações mais próximas ou mesmo internas da própria família.
Lembro de ter visto a porta da edícula aberta uma única vez. O mistério para minha geração beirava o conto de terror. Esta história sobre seu encontro com ela é muito forte. Muda completamente toda a perspectiva dos acontecimentos da família.
 
Nossa história real corre em trilhos muito diferentes de nossas crenças e verdades.
Brasil tem um quinto de sua população invisível, inexistente. Mais invisíveis que a bicicleta foi até bem pouco. Será que nós, ciclistas, não podemos temos nada a oferecer a estes invisíveis?

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