segunda-feira, 19 de março de 2018

...na terra do sobe desce sobe desce do Caminho da Fé

E no meio do caminho de asfalto entre Porto Ferreira e Andradas cruzo eu com um monociclista pedalando um aro 26. Cumprimentei efusivo e pensei sorridente "Arturo, não reclama e segue pedalando tua 29 de 20 marchas".

Em Andradas fui acordado bem mais cedo do que gostaria, como provavelmente todo hotel o foi pela conversa em volume alto saindo pela janela aberta de José e João, dois simpáticos caminhantes com quem jantei, conversei e demos risadas na noite anterior no simples, com ótimo atendimento e simpático Hotel Pastre. Sair o mais cedo possível é regra para todo peregrino principalmente por causa do sol e seu calor. O Caminho da Fé até que é bem sombreado, mas como vários trechos são no topo de montanhas o sol queima forte. 
Até a Serra do Lima, primeira das várias paredes pela frente, pedalei o quanto pude encostado no sombreado barranco da contramão. Depois de ter passado duas vezes pela Serra do Lima, olhando de longe assusta menos. Dei risada quando lembrei da primeira vez que estive ali. Estava sentado à sombra de uma árvore próximo do pé da serra e passou uma Kombi pé em baixo, a milhão, fazendo rally na curva. Continuou a toda até que ouvi o motor perdendo rotação, as marchas sendo reduzidas furiosamente, terceira, segunda, primeira, e o barulho do motor desacelerando num gemido sofrido de esforço, sofrendo, quase morrendo até conseguir terminar a subida bem devagar. "Opa! a coisa (a serra) é feia!"  pensei. Peguei a bicicleta, sai pedalando e mais duas curvas dei de cara com a parede de terra, uns 500 metros com inclinação de uns 20 graus ou mais. Hoje é asfaltada, melhorou um pouco, mas continua parede. Em zig-zag subi pedalando. Tudo lá em baixo vai ficando pequenino.
Serra do Lima
Dali para frente, dizem os que já passaram e a altimetria na internet, é que o bicho pega; parede para cima, parede para baixo, parede para cima, parede para baixo. A Serra do Lima é só o desejo do Caminho da Fé de boas vindas. Um pouco a frente, logo depois do vilarejo de Barra, vem uma curta e especial parede, inesquecível, uns 300 metros com 27 graus de inclinação que dizem ser o prenuncio da Luminosa, o desafio final onde se pagam todos pecados numa subida de 11 km. As duas vezes anteriores fiz esta parede com bicicletas carregadas e foi um “mais três passos, para, respira, outros três passos, para, respira...” Uma equipe de jornalismo da Band teve a brilhante ideia de parar o carro no meio desta subida de Barra para filmar o jornalista subindo empurrando a bicicleta. Bela imagem, mas óbvio que o carro teve que voltar de ré. Creio que nem jipe consegue sair do zero no meio daquela subida.
O divertido é ficar pensando que a maioria diz que pedalou o Caminho da Fé inteiro, de cabo a rabo. Caio Salerno diz rindo que a maioria mente. Com certeza. Roque, um senhor de 72 anos, afirmou com as mãos juntinhas, como numa reza, que pedalou todo trajeto, e aí riu e completou que "o divertido do mountain bike é que é tudo conversa de pescador". Pedalei um trecho com um mineiro, Carlos, de Pouso Alegre, que estava com uma full aro 26 top de linha que tinha pelo menos duas marchas mais reduzidas que a minha maravilhosa Groove 29. Fiquei com inveja.
próximo a Andradas
Desta vez não entrei na cachoeira de Barra. A recordação da vez passada não é boa: local lindo no meio da mata, mas estava bem degradado pelos romeiros e turistas. Indo com calma é possível encontrar a entrada para algumas cachoeiras.
O topo de serra entre Barra e Crisólia é arborizado, fresco, sem grandes subidas, num serpentear muito agradável de pedalar. Encontrei a mesma magnífica árvore que fotografei na minha primeira viagem. Parei para fotografar e conversar brevemente com uns caipiras que estavam em sua grande e agradável sombra. Mais à frente quase tomei um tombo com o susto provocado por um cachorro que saiu do meio do cafezal em silêncio e não percebi. O  sacana só latiu quando estava quase  abocanhando minha perna. 
A descida para Crisólia é forte e cheia de lombadas altas, mal feitas, perigosíssimas. É fácil tomar um capote por causa delas. No bar de Crisólia fiquei sabendo que são obra da Prefeitura de Andradas para controlar a descida da água de chuva. Mesmo sendo uma estradinha de terra aquilo ali é uma via pública e há regras de segurança ditadas pelo CTB que deveriam ser seguidas. De frente para o bar um campo de futebol sendo aparado por dois jardineiros (?). Perfeito, muito melhor do que vários que vemos nos campeonatos transmitidos pela TV. Fiz um elogio distante que no silêncio daquele pedaço de fim de mundo deve ter sido ouvido longe. Eles pararam suas foices, enxugaram o suor da testa, um ajeitou o largo chapéu de palha, e agradeceram. 
Finalmente Borda da Mota, onde encalhei e desisti na minha primeira tentativa. Havia programado esta viagem para fazê-la com calma, sem trechos longos, e por ironia do destino um pouco antes da partida apareceu trabalho e encurtou muito o tempo da brincadeira. Esta foi a razão de ter rodado até Andradas pelo asfalto, o que aliás foi uma experiência ótima, adorei. Sinto não ter passado por Águas da Prata nem por Poços de Caldas. Que seja, de Borda da Mata para frente a topografia é bem acidentada, como mostra a altimetria. Interessante que o pessoal que fez o Caminho da Fé fala muito da Serra do Lima e da Luminosa, e meio que cala sobre a sequência de paredes de Borda da Mata até a Luminosa. "Vamos em frente."
O único pneu furado aconteceu a um km de Tocos de Mogi. Fala-se Tócos de Mogi, nada a ver com tôcos, de tôco, pedaço de paú. O significado é outro, ouvi a explicação, mas não me lembro mais. O mineiro Carlos, com quem vinha pedalando, acabou me ajudando parando uma caminhonete que meu deu carona até a pequena cidade. Eu não parei a caminhonete para não incomodar; pura besteira. O povo do interior é bom e prestativo. Sentamos num dos bancos na rua principal da mínima Tocos de Mogi, tirei um pequeno espinho do pneu, consertei rapidamente o pequeno furo; uma parada providencial. Muito líquido, uma comidinha leve, e de volta a estradinha de terra. Desta vez levei a hidratação a sério, como deve ser, e fez uma diferença enorme no meu bem estar.
O trecho muito acidentado de Tocos de Mogi até Consolação tem uma paisagem maravilhosa, uma das mais bonitas que já vi. Sobe e desce contínuo, muito inclinado; para baixo se não tiver muito cuidado nem o Santo ajuda; para cima empurra empurra danado que até Cristo diria "precisa tanto?". Quanto mais se anda no Caminho da Fé mais bonito fica, é impressionante. Na passagem por um vale profundo, descida contínua, fundo de vale, subida que não acaba mais encontramos o terceiro ciclista, Reinaldo, que nos acompanhou até Consolação. Nos dois topos de montanha, o da descida e o da subida, o vale e o horizonte ao fundo dele pensei ter valido toda a viagem. Poderia ter ficado ali sentado uma vida, ermitão da beleza natural. Teria perdido o que veio em seguida.
lá em baixo Estiva
Naquele ponto da viagem, com todas aquelas descidas, meus freios abaixaram muito. Cheguei a pensar que teria que trocar a pastilha. Em Estiva, numa travessa depois da chegada à cidade, tive a grata surpresa de encontrar e conhecer a ótima bicicletaria do Edinho que ajudou nós dois, eu e o mineiro Carlos. As pastilhas estavam gastas, mas ainda davam bem para o gasto. Obrigado Edinho.
A subida de Estiva para Consolação, 450 metros de desnível em poucos quilômetros, é quase em linha reta para o topo da montanha, dura, muito dura, mas esta sim foi a paisagem inesquecível. Cheguei lá em cima no fim da tarde, com uma luz mágica se movimentando pelo verde dos campos entre sombras das nuvens velozes correndo praticamente sul norte. No meio da subida tive muita sorte e só peguei o chuvisco refrescante de uma breve pancada de chuva que caiu logo a frente e pegou em cheio Carlos. Deste topo de montanha até Consolação há uma descida, um plano e mais um trecho de forte subida para o ponto mais alto da montanha, outra paisagem maravilhosa, não tão aberta como a do primeiro topo. Quase com o sol se pondo, luz batendo bem na horizontal e dando contrastes fortes de sobra e luz, mais mágico ainda. 
Serra do Caçador
A sinalização do Caminho da Fé, que é simples e eficiente, flechas amarelas pintadas em locais bem visíveis, é muito fácil de seguir, mas numa encruzilhada alguém pregou uma flecha amarelada de plástico num mourão. Por via das dúvidas parei um garoto com uma motocross velha e de escapamento aberto, ele foi na frente e eu não aguentei, disparei despencando a montanha atrás. Ele e sua moto barulhenta passaram por um pequeno caminhão azul claro e nem me passou pela cabeça que no meio daquele lugar nenhum poderia ter alguém atrás da caçamba. E tinha. Eles voltaram para o meio da estradinha para vê-lo desaparecer na poeira. Por muita sorte e aos berros "Desculpem!" não atropelei ninguém. Olhei rapidamente para trás e eles riam.
descida para Consolação
 Cheguei a pequena Consolação com o pouco que restava do sol. A primeira pousada estava de porta aberta, uma bagunça grande lá dentro. Não apareceu ninguém. Quando voltei para rua veio uma menina e disse que estava fechada por uns tempos por troca de proprietário e que havia uma "outra pousada mais pra frente, ao lado da igreja". Lá encontrei o mineiro e Reinaldo sentados tranquilos. Conversamos brevemente e Carlos decidiu seguir em frente para Paraisópolis. "Eu chego lá no começo da noite". Eu e Reinaldo ficamos. Quase dormi na rua porque a pousada não tem máquina de cartão, só recebe em dinheiro. “Como assim? Tem caixa eletrônica em algum lugar?” “Só Bradesco” respondeu a dona. “Dancei!” Tive que 'comprar' dinheiro, ou seja, pegar uma boa alma que fez uma operação com meu cartão e eu paguei as custas da operação. Ele não aceitou uma caixinha pela ajuda. Eu dei uma abraço de alegria, o mínimo que ele merecia.
igrejinha de Consolação
Quando voltei para a pousada, encontrei Camila, que está trabalhando na organização do Caminho da Fé. Ela sentou comigo e me pediu para falar sobre as qualidades e problemas do que havia encontrado. 
Um belo jantar e cama. De novo fui acordado antes das 5:00 h. pela voz alta, quase aos berros, da senhora andarilha que falava ao celular no quarto ao lado. Que inferno esta mania de celular. O pessoal não sabe o que é ficar em silêncio, ficar consigo mesmo, deixar em paz a mente e a alma. Tomei café da manha, peguei minhas coisas e quando subi na bicicleta percebi que minha última etapa, de Consolação até Paraisópolis, só seria possível pela estrada de asfalto. Muita dor na musculatura do glúteo esquerdo. Teria sido mais sensato parar em Estiva. Empurrei muito mais do que estou acostumado. Erro de estratégia. E aí pensei, OK, pedalando pelo asfalto até Paraisópolis e de lá pelo asfalto até São José dos Campos de onde pego o ônibus para São Paulo. A Luminosa, Campos do Jordão e o final em Aparecida? Mais uma vez não vai dar. A dor me permitiu chegar até Paraisópolis, mas não dava para seguir em frente, o que foi uma sorte. A estrada para São José dos Campos é estreita e praticamente sem acostamento. Uma pena porque a paisagem é linda.
Não sei se quero fazer a Luminosa. O que sei é que estou escrevendo este texto e pensando quando volto para o Caminho da Fé, talvez sem Luminosa, com certeza sem o trecho de terra entre Campos do Jordão e Aparecida, a famosa e perigosa Serra das Pedrinhas. O nome diz tudo. 
Passeio maravilhoso. Voltei para casa com outra alma. Recomendo a todos, pedalando ou caminhando. Só vai com tempo para não ter que exagerar. Fé nos faz crescer, melhor ainda sem sofrer. Tempo, silêncio e paz.
Carlos, Reinado, e eu

Fotos, por melhor que sejam, não descrevem a grandeza das paisagens. Faço mais uma publicação sobre o Caminho da Fé com comentários finais e fotos.

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