Gostaria que o inventário terminasse ontem. Melhor, que nunca tivesse existido. Tive a ilusão que com a morte dele tudo se resolveria como num passe de mágica. Definitivamente não! Nunca pensei que os dias seguintes fossem ser tão mais pesados que o que se foi com o desaparecimento dele. Perdi a capacidade de me controlar, descobri o que pode ser o karma do karma. Usei as técnicas mais bestas para esquecer e mudar de rumo emocional, segui as recomendações de amigos e familiares, nada. Tentei lembrar dos momentos bons vividos, mas estes invariavelmente terminavam com a lembrança de outra estupidez idiota, coice certeiro e desnecessário, em mim ou em outra pessoa que dizia por ele querida. Bastava que estivesse por perto. Os passantes, aqueles que tiveram contato eventual, informal ou desinteressado, viam nele um anjo caído do céus, uma pessoa boníssima, um exemplo social, o que não deixava de ser naquelas circunstâncias, não posso negar. Frienemy puro.
Soube que foi achado algo inesperado no fundo do armário de roupas dele. Confirma mais uma vez e definitivamente uma das reclamações que minha mãe tinha. Bate o martelo sobre quem estava correto nas desagradáveis gritarias que teve com seus enteados. Pensei que tudo se resumisse a uma pequena caixa vermelha cheia de bugigangas que eu sabia da existência porque foi mostrada por ele próprio. Não consigo entender para que ele fez mais esta besteira sem tamanho.
Karma do karma porque olho para o passado, sei quem fui, como me comportei, e a imagem que deixei, e não posso reescrever, mostrar o que realmente aconteceu, tirar pesos pesados passados das costas de minha consciência. Colocando em outro patamar, que vale como referência, a história é escrita pelos vencedores. Ele venceu, e diferente da grande história, a da humanidade, não conseguirei reescrever a minha. Transitado de julgado, assunto encerrado.
Depois que ele saiu de casa, quando eu tinha 11 anos, comecei um processo doloroso para sair do círculo vicioso. Tive sorte. Fui morar num edifício onde moravam vários adolescentes com a mesma idade e que eram judeus. Mudaram minha história, me ajudaram muito sem saber, muito mesmo. Me fizeram olhar as relações numa outra escala. Lá, naquele edifício, vivi anos maravilhosos, tanto porque meu núcleo familiar ficou em paz, maravilhosa mágica, como porque tive amigos queridos, Beto, Neco, Saulo, que sem saber me apoiaram. Não posso deixar de citar seus pais e outros vizinhos, todos judeus, gente equilibrada. Com minha mãe e irmão em paz tudo começou a se encaixar. Paz!
No meio desta tormenta karma do karma que vivo agora, e por causa dela, olhei-me no espelho e senti-me ridículo. Nos anos do apartamento e meu convívio com os judeus pude ver alguns deles que escaparam de campos de concentração. Não é necessário parar e ter uma conversa profunda e dolorosa com alguém que viveu ou conviveu com algo que muito além de um karma para sentir a diferença. Em tudo expressam a vida. Passou de um grau de sofrimento as atitudes práticas perante a vida, a vida, a vida, a vida, são outras, sem mimimi. E olhando no espelho pensei "Cara, deixa de ser ridículo. Olha o abençoado que você foi e é. Mas estarei tendo um mimimi?
"O tempo diz tudo a todos. O tempo ensina". Já se passaram duas semanas. O que eu senti como um linchamento oferecido de bandeja pelo karma vai esvanecer, mas continuará uma sombra, disto não tenho dúvida. Não é uma exclusividade minha, isto tenho certeza.
Cumpri minhas obrigações sociais, mas me pergunto o porque as cumpri e se valeu a pena. De qualquer forma cumpri. Não houvesse cumprido o karma seria outro, mas karma. Disto não se escapa.
Ouvi os conselhos de uma tia, segunda mãe, ou agora 'a' mãe. Não me lembro suas palavras, o karma do karma é mais pesado que sábias palavras, mas sei que sua sabedoria, sabedoria de quem viveu a vida, e sabe bem o que pode ser um karma do karma, me deu referência que não estou sozinho e definitivamente não sou o único. Aconchego.
Tenho que responder com educação aos que me vem dar condolências, mas ninguém está escapando de minhas palavras sobre como foi para mim e como estou me sentindo. Não tenho a mais remota dúvida que só a verdade salva - pelo menos suaviza para mim.
A maioria das verdades desta vida são construídas sobre patamares das verdades individuais de cada um, que por sua vez distorcem a verdade que está sob seu nariz. Quem conta um conto, aumenta um ponto. Dependendo do que, o karma do karma. A história é dos vencedores. Aos perdedores migalhas suadas.
No Estadão saiu um denso e pesado ensaio "Sobre os sentimentos silenciosos que possuímos e não confessamos" com título "Pequenas vilezas humanas".
Diferente do que repete a exaustão um amigo, não considero a vida dura. E como está em várias escrituras sagradas, a paz da maturidade só vem com as passagens de sofrimento. Sim, agora me lembrei, foi isto que minha segunda mãe me disse. Me pergunto, precisava? Não teríamos outros caminhos?
Do que vivi, posso dizer que não teria entrado neste profundamente dolorido karma do karma caso tivesse sabido colocar a verdade como prioridade sempre, ou algo próximo a ela, em cada situação, em cada instante. Não teria sido presa tão fácil, isto é - caso tivesse feito a comunicação correta. Não raro a verdade é uma baita mentira.
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