terça-feira, 3 de dezembro de 2024

Karma do karma

Gostaria que o inventário terminasse ontem. Melhor, que nunca tivesse existido. Tive a ilusão que com a morte dele tudo se resolveria como num passe de mágica. Definitivamente não! Nunca pensei que os dias seguintes fossem ser tão mais pesados que o que se foi com o desaparecimento dele. Perdi a capacidade de me controlar, descobri o que pode ser o karma do karma. Usei as técnicas mais bestas para esquecer e mudar de rumo emocional, segui as recomendações de amigos e familiares, nada. Tentei lembrar dos momentos bons vividos, mas estes invariavelmente terminavam com a lembrança de outra estupidez idiota, coice certeiro e desnecessário, em mim ou em outra pessoa que dizia por ele querida. Bastava que estivesse por perto. Os passantes, aqueles que tiveram contato eventual, informal ou desinteressado, viam nele um anjo caído do céus, uma pessoa boníssima, um exemplo social, o que não deixava de ser naquelas circunstâncias, não posso negar. Frienemy puro. 

Soube que foi achado algo inesperado no fundo do armário de roupas dele. Confirma mais uma vez e definitivamente uma das reclamações que minha mãe tinha. Bate o martelo sobre quem estava correto nas desagradáveis gritarias que teve com seus enteados. Pensei que tudo se resumisse a uma pequena caixa vermelha cheia de bugigangas que eu sabia da existência porque foi mostrada por ele próprio. Não consigo entender para que ele fez mais esta besteira sem tamanho.

Karma do karma porque olho para o passado, sei quem fui, como me comportei, e a imagem que deixei, e não posso reescrever, mostrar o que realmente aconteceu, tirar pesos pesados passados das costas de minha consciência. Colocando em outro patamar, que vale como referência, a história é escrita pelos vencedores. Ele venceu, e diferente da grande história, a da humanidade, não conseguirei reescrever a minha. Transitado de julgado, assunto encerrado.
 
Depois que ele saiu de casa, quando eu tinha 11 anos, comecei um processo doloroso para sair do círculo vicioso. Tive sorte. Fui morar num edifício onde moravam vários adolescentes com a mesma idade e que eram judeus. Mudaram minha história, me ajudaram muito sem saber, muito mesmo. Me fizeram olhar as relações numa outra escala. Lá, naquele edifício, vivi anos maravilhosos, tanto porque meu núcleo familiar ficou em paz, maravilhosa mágica, como porque tive amigos queridos, Beto, Neco, Saulo, que sem saber me apoiaram. Não posso deixar de citar seus pais e outros vizinhos, todos judeus, gente equilibrada. Com minha mãe e irmão em paz tudo começou a se encaixar. Paz!

No meio desta tormenta karma do karma que vivo agora, e por causa dela, olhei-me no espelho e senti-me ridículo. Nos anos do apartamento e meu convívio com os judeus pude ver alguns deles que escaparam de campos de concentração. Não é necessário parar e ter uma conversa profunda e dolorosa com alguém que viveu ou conviveu com algo que muito além de um karma para sentir a diferença. Em tudo expressam a vida. Passou de um grau de sofrimento as atitudes práticas perante a vida, a vida, a vida, a vida, são outras, sem mimimi. E olhando no espelho pensei "Cara, deixa de ser ridículo. Olha o abençoado que você foi e é. Mas estarei tendo um mimimi?

"O tempo diz tudo a todos. O tempo ensina". Já se passaram duas semanas. O que eu senti como um linchamento oferecido de bandeja pelo karma vai esvanecer, mas continuará uma sombra, disto não tenho dúvida. Não é uma exclusividade minha, isto tenho certeza. 
Cumpri minhas obrigações sociais, mas me pergunto o porque as cumpri e se valeu a pena. De qualquer forma cumpri. Não houvesse cumprido o karma seria outro, mas karma. Disto não se escapa.

Ouvi os conselhos de uma tia, segunda mãe, ou agora 'a' mãe. Não me lembro suas palavras, o karma do karma é mais pesado que sábias palavras, mas sei que sua sabedoria, sabedoria de quem viveu a vida, e sabe bem o que pode ser um karma do karma, me deu referência que não estou sozinho e definitivamente não sou o único. Aconchego.

Tenho que responder com educação aos que me vem dar condolências, mas ninguém está escapando de minhas palavras sobre como foi para mim e como estou me sentindo. Não tenho a mais remota dúvida que só a verdade salva - pelo menos suaviza para mim. 

A maioria das verdades desta vida são construídas sobre patamares das verdades individuais de cada um, que por sua vez distorcem a verdade que está sob seu nariz. Quem conta um conto, aumenta um ponto. Dependendo  do que, o karma do karma. A história é dos vencedores. Aos perdedores migalhas suadas.

No Estadão saiu um denso e pesado ensaio "Sobre os sentimentos silenciosos que possuímos e não confessamos" com título "Pequenas vilezas humanas".  
Diferente do que repete a exaustão um amigo, não considero a vida dura. E como está em várias escrituras sagradas, a paz da maturidade só vem com as passagens de sofrimento. Sim, agora me lembrei, foi isto que minha segunda mãe me disse. Me pergunto, precisava? Não teríamos outros caminhos?

Do que vivi, posso dizer que não teria entrado neste profundamente dolorido karma do karma caso tivesse sabido colocar a verdade como prioridade sempre, ou algo próximo a ela, em cada situação, em cada instante. Não teria sido presa tão fácil, isto é - caso tivesse feito a comunicação correta. Não raro a verdade é uma baita mentira.

domingo, 1 de dezembro de 2024

Desperdício

Cai na asneira de fazer um comentário numa rede social sobre o desperdício de dinheiro que foi a falta de critério na implantação de ciclovias e ciclofaixas em São Paulo. Para piorar respondi a um entusiasta do sistema cicloviário implantado em Sorocaba. "No fim de semana tem até congestionamento..." respondeu ele.

A palavra que pegou pesado foi "desperdício". 'Como assim ciclovia é desperdício?' A pergunta foi repetida em tom de sarro em várias postagens. Desperdício!? Pelo que se entende das postagens, se foi feito em nome do social então não é desperdício. Não mesmo?

Fiquei procurando como responder e cheguei a duas conclusões, a primeira sábia: não responder. A segunda, mais sábia ainda, procurar com calma um bom exemplo que possa explicar para os mais fanáticos porque mesmo a mais urgente ação social pode ser um desperdício de dinheiro público. E não demorou muito, lá veio um ótimo e terrível exemplo. 

Juan Domingos Peron assumiu a presidencia de uma Argentina em 1950, recém saída da Segunda Guerra Mundial e riquíssima, com a maior reserva de ouro do planeta. Um dia Peron foi para a rádio e disse que estava caminhando sobre o ouro, que o povo não comia ouro, e que daria este ouro para o povo. De um país riquíssimo, a quinta economia do mundo, com índices sociais invejáveis, a Argentina se transformou no que é hoje, com seus 50% de pobres ou abaixo da linha de pobreza, uma economia completamente desajustada... O ouro? Ora o ouro! O que foi feito dele. Não importa para muitos, Perón é de esquerda (?) e tem que ser aplaudido. 

Enfim, mesmo riqueza abundante não se deve desperdiçar, mas é difícil não cair em tentação. Amir Klink fala muito  sobre desperdício, sobre a perigosa facilidade que vem com o ter em abundância.

O Brasil é o que é porque o nível de desperdício que temos por aqui é completamente absurdo, todo tipo de desperdício, de riquezas, oportunidades, no mal feito, no pensar errado, comodismo...

Talvez o desperdício que mais me incomode seja o de boas cabeças com boas e verdadeiras intensões. 

Bicicleta é crucial para a transformação que se espera das cidades, está mais que provado. As razões são inúmeras, muito além das questões de mobilidade. Encher as cidades de ciclovias não resolve porque tem gente que não usa e provavelmente nunca usará uma bicicleta. Técnica de segurança no trânsito moderna também descarta o concentrar em ciclovias e ciclofaixas.  

Num bairro com uma topografia muito acentuada, como a Pompeia, colocar uma ciclofaixa numa subida que elimina 95% dos usuários de bicicleta é de uma burrice sem tamanho. Implantar ciclofaixa em bairro com topografia acidentada, de classe média muito alta, onde o automóvel é regra social, sem comércio  por perto, onde há pouco trânsito e só circulam meia dúzia de ciclistas esportistas, é ou não é  desperdício? Brigar com todo um bairro comercial para facilitar a passagem alguns ciclistas vale a pena? 
 
Responsabilidade social requer um cálculo bem elaborado de custo benefício de tudo, ou haverá uma boa possibilidade de desperdício de dinheiro público, que por sua vez é crucial para as urgências sociais que temos.

Não é porque tem viés social que investir desmesuradamente vai ajudar a resolver a questão. Neste nosso Brasil isto está mais que provado. 
Tem que investir bem, pensando a curto, médio e longo prazo, com todas as variantes, pró e contra no cálculo,ou a possibilidade de desperdício será alta. 
Boas intenções por si só são um bruto desperdício. 
Seja pragmático.