quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Entre a proposta, o projeto e a realidade pública e civil

Antes de começar: como funciona a realização de uma melhoria que necessite obras neste país? Aqui, este caso, o viário. Por lei é obrigatório iniciar todo trabalho por um Termo de Referência, que orienta sobre o que se trata, o que se pretende, cronograma de trabalho, qual deve ser o resultado final desta ação. Depois de redigido, revisado e aprovado por especialistas da coisa pública, o que demanda tempo, o Termo de Referência é aberto à concorrência pública. Quem ganha a concorrência terá que fazer, por ordem: (proposta) Funcional, que é um primeiro croqui de todo o futuro projeto, serve como norte de discussão sobre o proposto e sobre modificações necessárias, caso haja alguma. Ao Funcional segue-se o (projeto) Básico que refina mais ainda o que virá a ser o (projeto) Executivo, que será o projeto final entregue para quem irá executar a obra em si. Cada uma destas etapas tem tempo de feitura estabelecida por um cronograma implícito no Termo de Referência. Terminada esta segunda etapa – Funcional, Básico, Executivo – é lançada outra concorrência pública, ou licitação (lei 8.666), para a execução da obra em si. Há um tempo previsto em lei para a concorrência. Há ainda a possibilidade de alguém ir para justiça no meio ou final do processo, o que normalmente atrasa tudo. Já me disseram que o tempo mínimo para vencer todo processo, da feitura do Termo de Referência até a entrega da obra ao público vai aproximadamente 2 anos; mas outro dia ouvi uma entrevista da Dilma sobre suas propostas de campanha e o PAC onde ela afirmou que o processo demora 5 anos ou um pouco mais. Justificativa para os atrasos do PAC ou realidade? Infelizmente deve estar mais para a realidade. Estamos fodidos e mal pagos.
Mas há mais problemas do que simplesmente a lerdeza deste processo todo, que são as decisões e até vontades individuais dos que detém o poder das assinaturas técnicas necessárias, como a mais conhecida liberação ambiental, dentre outras. Projeto de implantação de melhorias para pedestres, ciclistas e deficientes de mobilidade leva irremediavelmente a uma mudança no trânsito existente, aquela beleza que vemos no nosso dia a dia. Dependendo da escala de mudança proposta os efeitos serão sensíveis no local e nos arredores um pouco mais distantes que os simples mortais conseguem imaginar. É o efeito de uma pedra atirada em água parada de lago. É uma questão física: dois corpos, veículos rápidos e ciclistas lentos, veículos rápidos e pedestres e deficientes mais lentos ainda (para quem?), não ocupam o mesmo lugar no espaço e tempo. Mexer no estabelecido faz com que a decisão seja técnica e política ao mesmo tempo. A meu ver, mais política do que técnica. Com um rápido e desordenado inchaço no uso de veículos motorizados nas cidades, que é uma decisão política, a decisão de mudança para o bem de todos e o surgimento de uma cidade viva é quase que puramente política. Não se pode esquecer que o técnico, aquela figura escondida atrás de uma mesa que decide com pleno poder sobre sua decisão (lei Federal) sofre uma pressão grande não só do chefe, mas da família e não tão indiretamente de toda sociedade, portanto sua decisão não é pura e simplesmente técnica.
Mesmo quando a implantação de uma melhoria para ciclistas e pedestres (aparentemente) não influi direta e imediatamente no fluxo de veículos, hoje um fator muito sensível para todos, até para atropelados, em seu devido tempo influenciará de alguma forma. Bom e simples exemplo é a ciclovia das praias de Leme –Copacabana – Ipanema – Leblon que fez aumentar sensivelmente o número de ciclistas e com isto durante um bom tempo foi gerador de inúmeros acidentes, principalmente atropelamentos de pedestres. Se a decisão foi técnica as conseqüências foram políticas e neste caso foram assumidas e levadas adiante, hoje com bons resultados. Um deles é criação das ruas com velocidade limitada para 30 km/h, o que melhora muito a segurança de quem está vivo e usa a via. Hoje, Dia Mundial sem Carro 2010, soltaram algumas entrevistas que já fala sobre duplicação de todo sistema de ciclovias cariocas. Pedra no lago.
Não é raro que o Termo de Referência seja a base de um grande erro. Na caso questão da bicicleta sonha com soluções perfeitas para a segurança do ciclista no trânsito, principalmente ciclovias. Todos sabem que inexiste ciclovia sem cruzamento. O óbvio é chato. Delirar é muito mais divertido. A verdade é que se há cruzamento há conflito, se há conflito este deve ser resolvido e isto só acontece com diferença no fluxo, com alguma perda para um dos lados, ou melhor, os dois lados. No caso, o ideal seria uso de semaforização em cada esquina de cruzamento da ciclovia com o resto do trânsito, de motorizados e pedestres. No mínimo estamos falando de um sensibilíssimo aumento nos custos da obra. E no ter que mexer em todo projeto de trafego de uma vasta área no entorno da ciclovia. Com ciclofaixa é um pouco menos crítico, mas o problema também é difícil de resolver porque acredita-se que todo o motorista é uma assassino em potencial e que todo ciclista é suicida. Bom mesmo é segregar, quanto mais distante dos carros melhor. De fato é, mas na realidade não funciona assim. E isto leva a um jogo de interesses e princípios pertinentes entre técnicos, gerentes, secretários, e governante. E tem ainda a consulta pública... Como praticamente todos são só motoristas...
Tenho pouca prática com Termos de Referência, mas tenho vivência suficiente para saber que praticamente inexiste técnicos de trânsito e transporte, urbanistas, advogados neste país que usem de fato a bicicleta como modo de transporte diário, que tenham larga vivência para conhecer a realidade do ciclista médio e que sejam capazes de redigir um Termo de Referência realista. Ademais, sempre repito, vivemos em cidades com desenho urbano europeu, quando não medieval, se medieval, queremos ter um sistema viário com o fluxo americano que só se vê em filmes românticos, e o pedestre praticamente não existe, ou pelo menos não deveria existir porque atrapalha. E ainda sonhamos que poderemos construir no meio desta baderna ridícula ciclovias iguaiszinhas às da Holanda. Genial, não é? Não sei não, mas eu acho, só acho, que não dá certo.
A questão toda é que pedestres, ciclistas e deficientes foram, continuam e seguirão sendo praticamente esquecidos, quando não desprezados, e que dar-lhes o que é seu direito irrefutável é enfrentar o estabelecido; o que todos nós sabemos. Mas negamos a ver o quanto isto é profundo, arraigado e literalmente lesivo às nossas urgências e sonhos, às nossas vidas. Pelo menos descobriram que a bicicleta é simpática, mas ainda não se sabe o que fazer com ela, apesar da boa vontade de alguns tantos. As propagandas de carros, condomínios e outros ficam mais bonitas com ciclistas. Pedestres e deficientes? Ops! se assustam até os próprios ciclistas.

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