segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

São Paulo sub-emergente

É 16h e 37m aqui em São Paulo; quarta-feira, 04 de fevereiro de 2010, e cai mais um dilúvio. Provavelmente a cidade ficará novamente debaixo d’água em muitas localidades. E com um pouco de sorte termino este texto sem que um raio torre o computador. É o verão mais chuvoso da história paulistana.

Água é vital, mas quando em excesso se espalha por onde quer. Ai não tem nível social ou cultural, tudo e todos que estão no caminho ficam molhados. Já tive minha casa invadida por água e sei bem como é. É nestes momentos que você entende o que é significa “impotência”. Nada pode frear as águas quando elas assim o querem. Esta é a verdade. Água deveria aparecer como sinônimo de verdade porque fisicamente têm propriedades iguais. Mesmo que tentemos enganá-las elas mostram suas implacáveis realidades. São o que são e ponto.

Choveu, encheu?

Os córregos, em sua maioria, não têm grandes áreas alagadiças, ao contrário dos grandes rios. Todas as áreas que pertencem às águas estão tomadas pela cidade, ou melhor, por seus cidadãos. E ai o detalhe importante: as várzeas e áreas alagadiças pertencem à cidade, mas isto não dá direito de uso indevido pelos seus cidadãos. A cidade tem que funcionar ou a vida de quem mora nela não será boa. E o primeiro ponto para ela funcionar está numa hierarquia: respeito às características geomorfológicas, em cima disto fazer o sensato uso de solo, águas e ar (ventos), e por último dar limites ao cidadão. Inverter esta hierarquia mais cedo ou mais tarde acaba não dando certo. O Brasil esperto se fez mais sábio que a natureza e transformou suas cidades nesta loucura de desastres e baixa qualidade de vida.

São Paulo, o município, está assentado sobre três grandes rios: Tiete, Tamanduatei e Pinheiros, e mais algumas centenas de córregos. Resolver as coisas por aqui, pela quantidade de especificidades desta imensa região metropolitana, serve como imenso laboratório urbano e, portanto, exemplo para milhões, talvez até bilhões de habitantes. Pelo quanto estão sendo usadas técnicas de engenharia, de preferência de superfície, bem visíveis, como canalização, piscinões e outras. A situação melhorou muito, mas todo este sistema é projetado para uma determinada variável. Continua sendo em parte uma mentira porque parte do princípio que a força da água tem limites. Como sempre responsabilizo todos nós cidadãos por esta situação. Adoramos comprar jeitinhos por soluções. Bem brasileiro.

Somos mais de 11 milhões de habitantes no Município de São Paulo. Com estas enchentes toda a população da cidade sofre, se não diretamente, mas também porque a cidade se torna inviável durante a enchente e depois continuará sofrendo conseqüências de toneladas de lixo e entulho, ruas destruídas, famílias desamparadas, e todos custos resultantes. Todos pagam impostos de uma forma ou outra, mesmo os que vivem na informalidade, portanto a bomba estoura no bolso de absolutamente todos. Dá até para afirmar que custo, ou seja, imposto, também deveria ser sinônimo de água e verdade. Fez besteira hoje, brincou com o dinheiro, vai ter que pagar amanha. Como dizem os americanos “There’s no free lunch” (Não há almoço grátis); uma seca e brilhante frase do economista Milton Friedman.

Para começar, chamar um fato da natureza de desastre é coisa de humano. Humanizar a natureza, querer controlá-la com truques, só fará que, mais cedo ou mais tarde, ela faça a verdade mascarada aparecer e tomar seu devido lugar. Enchente é isto. São as águas maltratadas enchendo o verão.

custo / benefício

Os afetados para valer pelas enchentes fazem mais de 20 mil cidadãos (segundo dado divulgado agora na Band). Muitos vivem em áreas que dão a certeza que com uma chuva mais forte ficarão debaixo d’água e perderão tudo, ou coisa pior. De alguma forma irão reconstruir suas vidas, seja com suas próprias forças, seja com a parca ajuda do poder público ou com a caridade da população civil. Vivem em áreas alagáveis e este é seu destino. São eles persistentes, obstinados, cegos, burros, coitados ou o que? E a pergunta correta não é esta. A pergunta que nos devemos fazer é somos nós burros ou cegos? O que acontece com eles nos afeta, nós os sequinhos, porque desequilibra todo o funcionamento da cidade. Se sua rua está em ordem sempre porque está no alto e é rica, os investimentos do futuro que darão qualidade a vida de seus filhos está comprometido. Quantas horas trabalho foram perdidas nas enchentes? Qual é esta perda para uma cidade que gera aproximadamente R$ 28 bi mensais (dado base 2007)? Quanto custa manter 20 mil cidadãos em áreas alagáveis desta cidade?

O país está há muito sendo construído em duas bases: a indústria da construção civil e a automobilística. Córregos, riachos e rios tiveram sua verdade ludibriada sendo transformados em vias principalmente para os automóveis, e o uso do solo foi realizado para atender interesses mobiliários legais e ilegais. Permitiu-se bandido de todo tipo e as invasões estão ai. Brincamos com as águas, brincamos com a verdade, calamos os que tinham o conhecimento, o saber sobre as águas porque já sabiam que aquilo daria nisto que estamos e seguiremos vivendo.

Os coitados que estão em área de risco não são tão coitados assim porque sabem ao que estão sujeitos, sabem sobre o perigo. A frase “se eu sair daqui para onde vou?” é ao mesmo tempo verdade e fuga. Esperneiam por um tempo e acabam silenciando até o próximo desastre. Acomodam-se. De lá não se movem, como os que convivem com a seca. É motivo de orgulho ser sofredor. Ai são bem brasileiros. Estou sendo provocador cruel com dor no coração, mas não tenho mais paciência com estas coisas.

A todos nós não interessa os coitados, porque qualquer coitado custa uma barbaridade para a toda a sociedade, mesmo para aqueles que estão dentro de suas ricas muralhas medievais, que não deixam de ser um gueto ao contrário. Enchentes é tão maligna quanto o segar do medo burro da avareza. É patético que nestas situações os empreendedores não vejam ai um grande negócio, não o negócio da mentira, do enganar as águas e a população, mas um negócio de construção de bom senso e inteligência de um uso de solo urbano sensato, seguro, próspero e perene para todos. Se não há inteligência nos empreendedores de plantão, pelo menos deveria haver bom senso em toda a população. Do poder público nos resta pouca esperança porque perdeu a capacidade de ser mediador e de tomar providências. O que há séculos se prova é que São Paulo segue enchendo, numa gripe que nunca tem cura.

Um bom projeto

A menina dos meus olhos é o Projeto Córrego Limpo, mesmo com seus limites. Só para entender o nível de limitação: para a SABESP ligar o esgoto de uma casa é necessário autorização do proprietário. Perante a lei não interessa o coletivo, mas o direito individual. Se o sujeito disser “não ligo” o estado e seu bolso que arquem com os custos da saúde pública local. Córrego Limpo talvez seja minha última esperança que o paulistano, os metropolitanos, e um dia o Brasil, venham a entender que se pode transformar a cidade para o bem com medidas relativamente simples. Gostaria que projeto fosse radical, não só cuidando da água do córrego, mas fazendo a recuperação do leito dos córregos e de suas várzeas, retirando tudo o que está em áreas alagáveis, incluindo todo tipo de construções e população. Locais como o Jardim Romano e Jardim Helena prova o absurdo de se permitir que um rio, no caso o Tiete, não tenha direito ao que é dele. Não é possível que invasões em várzeas, legais ou não, sejam acariciadas pela população e perenizadas pelo poder público, como prova o CEU Jardim Romano - Centro de Educação Unificado - uma verdadeira construção anfíbia.

A política do coitadinho e da esmola é mais que um desastre, é canalhice, fascismo, populismo já visto; é contra a vontade da população que cada dia mais se expressa no sentido de diminuir o abismo social que temos. Nossas cidades são um desastre urbano e só com a real reforma destas, o fim de todos guetos, pobres ou ricos, alagados ou não, é que vamos chegar a bem estar comum.

Para quem nunca viajou para uma cidade que merece o nome de cidade eu afirmo que não há preço que pague andar tranqüilo pelas ruas, sem medo de quaisquer opressões, vendo crianças felizes livres circulando ou brincando. Para nós brasileiros, do tipo que quer construir um futuro melhor e quando viaja não fica aprisionado em lojas e compras, entender o que é uma cidade é chocante.

Mapas de São Paulo
http://atlasambiental.prefeitura.sp.gov.br/mapas/119.jpg - declividade
http://atlasambiental.prefeitura.sp.gov.br/mapas/117.pdf - geologia
http://atlasambiental.prefeitura.sp.gov.br/pagina.php?id=28 - favelas

Projeto Córrego Limpo
http://www.corregolimpo.com.br/corregolimpo/por_que_despoluir/sobre_projeto.asp

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