segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Zumbi e o cometa


Zumbi está sendo acariciado e dormindo como um anjo. É um pequeno poodle anão preto de uma beleza rara para a raça. Esguio, pernas compridas, tórax grande e pouca cintura, pescoço harmonioso; um corpo equilibrado. Inteligente, dócil e carinhoso, mas senhor de seu pedaço, e por isto tido como genioso. Seu pelo encaracolado é muito macio e dá um grande prazer ao passar suavemente meus dedos. Acariciado dorme mole como um filhote, como para cativar quem o aconchega. Mesmo com a TV ligada sempre olho para aquele lindo animal de corpo quente espichado junto a minha perna direita. Olho com o olhar de um pai e realmente me sinto como tal.
Na TV passa um documentário que aventa sobre qual seria hoje os efeitos de um possível impacto de um corpo celeste na Terra. Me fez lembrar de trechos do “Day after”, no qual a população é forçada a sair correndo de Nova Iorque para sobreviver ao impacto. A população desesperada engasgada no congestionamento da estrada vê pasma o cometa cruzando sobre suas cabeças em direção a cidade que nunca havia parado. Lembro claramente da cena, mas não consigo lembrar de alguém tentando salvar seu animal de estimação. Minha cabeça viaja sem barreiras sobre quem somos. Ambientalmente irresponsáveis. Sequer temos integridade moral, ponto de equilíbrio tão humano, com estes indefesos bichos que vivem em nossas casas e que tanto nos retornam em nossas necessidades humanas. Enquanto nos prestam serviços caseiros, como os escravos de outrora, valem. Uma grande quantidade deles é jogada nas estradas por seus donos quando estes vão para suas férias porque o preço para ter um animal de estimação num hotel é caro ou pode atrapalhar o merecido descanso, tão humanamente necessário.
Numa das vezes que fui levar alguém no aeroporto cruzou rápido na frente do carro um pincher desesperado. Cruzou todas 5 as faixas da marginal e chegou por milagre na barreira de concreto. Olhei pelo espelho e ele seguia correndo colado ao muro; desesperado com aquela loucura de carros em alta velocidade. Quase bati o carro. Quanto terá durado? Será meus Zumbi e seu parceiro Billy, deitado um pouco a frente dos meus pés, conseguiriam num golpe de sorte simplesmente cruzar uma tranqüila rua sem virar um monte de carne esmagada no asfalto? Conseguiriam achar um bom local para se abrigar? Como se arranjariam na luta pela comida? São pequenos, completamente dependentes e por isto frágeis, absolutamente frágeis.
Há um nível de saturação emocional que não conseguimos transpassar. Levamos a vida no que nos é suportável e nossas mentiras já não são mais biológicas. Não são blefes de sobrevivência, mas masturbações de vaidade e status. O humano é cancerígeno para a vida. Não é necessária a colisão de um corpo celeste para uma extinção em massa. Nós damos conta do recado. Provavelmente deixaríamos para trás tudo em nome da auto-preservação. A incrível capacidade de adaptação humana seria seu carrasco porque já o é. Se um dia nos dermos conta do nosso nível de barbárie atual provavelmente xingaremos os desafetos chamando-os de “humanos!”. “Humano! Que nojo!”
Aquela doce delicadeza adormecida ao meu lado que acaricio gera grande responsabilidade. Meus dedos passam lenta e levemente pela ternura dos pelos e sinto uma completa impotência sobre a minha responsabilidade com aquela frágil inocência. Zumbi é o reflexo do lhe ensinei, dos meus vícios que fiz com que ele também vivesse e dos quais ele é completamente dependente. Sou frágil, ele é frágil. Sou humano, ele é um animal doméstico, escravo de minha humanidade.
Sigo acariciando Zumbi. Meu olhar está focado, marejado, praticamente não vê nada perdido dentro de minha consciência. Sinto desprezo pelo que sou. Como seria uma fuga em massa? O que eu deveria fazer com estes dois pequenos cachorros? Como fazê-los sobreviver? Provavelmente os meus netos teriam ajuda de alguém, mas e eles, e todos os outros, cães, gatos, pássaros, hamsters...? Sinto uma dor tremenda de vergonha, desespero, impotência, inoperância. O que estamos fazendo com tudo em volta? Seguro Zumbi com cuidado e o trago até minha fase. Ele está mole e não reclama. Sinto seu cheiro. Há um leve toque do fedor dos canos de escapamento. Os pequenos são os que mais sofrem com o veneno que veículos motorizados soltam no ar. Meu neto chega em casa com o mesmo fedor. Procurar sair nos momentos de pouco movimento ou ir para onde o número de carros é menor já não faz mais efeito. Eles não precisem de um meteorito, basta passear na rua. Eles tem que fazer pipi e coco, cheirar outros cachorros, esticar as perninhas nervosas. Com coleira e no passo do dono.
Não tenho estomago para ouvir, pensar ou falar sobre nossa humanidade e seus efeitos contra a vida animal. O dia que mostraram um filme sobre a forma como matam gado para corte meu emocional entrou em colapso. Nunca mais consegui trabalhar com protecionismo. A luta pela proibição de pesca às baleias foi meu último e glorioso ato em nome da proteção da vida animal. Pensei lá com meus botões: “O que dá para fazer para trabalhar de outra forma, com um outro foco que não cause um estrago emocional tão brutal”. Surgiu a bicicleta.
Da ecologia para o meio ambiente.
Na Ponte Cidade Jardim o ciclista estava estendido no asfalto. Acabara de acontecer, só havia um homem em pé protegendo-o. Deitei a bicicleta no asfalto e me aproximei daquele rosto que olhava imóvel para o céu. Havia pouco sangue, mas o corpo estava completamente retorcido. Lentamente coloquei a mão em seu pescoço para ver a pulsação e não havia mais coração, nem respiração, mas ainda pude sentir a última vibração da energia da vida daquele homem. Uma espécie de pequena eletricidade entrou pela ponta de meus dedos, correu meu corpo e se foi. É uma sensação brutal. A vida ali acabou, ele partiu. Seu olho ficou opaco. Fiquei olhando sereno para ele e por muito tempo não me lembro de ter ouvido ou percebido a passagem de qualquer carro, ônibus ou moto por perto. Foi um silêncio completo, quieto, vácuo, sem mais. Olhei para frente e vi a ponte, o morro do outro lado do rio, o céu de final de tarde plenamente azul. Havia alguém atrás de mim, talvez o mesmo que guardava o corpo, não me lembro quem, mas sei que me levantei e disse calmamente “morreu”. Estranha a vida, mas bela por eu estar vivo. Subi na minha bicicleta e segui pedalando. Conversei com calma com meu médico e sei que senti a morte na ponta dos dedos. À noite deitei na cama e dormi. Humanos são humanos, vida é vida.

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