A mãe está visível irritada com os urros selvagens vindo do carrinho de bebê que segue a frente empurrado por ela. É fácil perceber pelos movimentos triscados do corpo da jovem e seu andar curto e apressado. A criança se retorce, seus berros são tão fortes que ela se engasga e tosse, esperneia tentado se livrar do carrinho, pernas escapam para os lados, vê-se as mãos tentando aguarrar o braço da mãe. A mãe para, agacha de frente para ele, o diabinho tenta arranhar o rosto dela, que desvia do ataque. Exausta, desiste e o tira do carrinho. Solto na calçada, a criança se acalma, corre um pouco, vira-se para provocar a abatida e envergonhada mãe. A mãe se levanta segurando no carrinho, a criança corre mais um pouco e novamente para e se vira em provocação sorridente. A mãe inclina o corpo para frente e abre os braços na esperança que ele volte. Seu braço direito aberto derruba uma garota bem vestida que sem olhar para frente, olhos no celular, vem rápido pela calçada num patinete. Bolsa para um lado, sapato social de salto alto para o outro, meia rasgada, joelho e cotovelo arranhados, ela se levanta grogue ainda sem perceber que está com a testa sangrando. A mãe, já sem saber mais o que acontece ou onde está seu filho endiabrado, pede desculpas, mas imediatamente é ofendida e quase recebe um tapa. Alguns passam só olhando, uns poucos param incriminando a menina do patinete e a mãe. A criança assustada volta para a mãe, vem acompanhada por uma boa alma preocupada com tudo que via. A criança agarra-se desesperadamente à perna da mãe e desanda a chorar, agora um choro de susto e não mais um choro de raiva mimada.
A garota do patinete enquanto limpa o sangue que escorre aos olhos é contida por um senhor que lhe agarra os pulsos. Grita palavrões e chora, reclama que não vai poder trabalhar, mais palavrões.
A mãe estoura sua irritação, agarra o malcriado com força pelo braço, o coloca a força no carrinho e o prende com as alças de segurança. O diabinho agora chora de susto e medo, chora alto, sem parar. Uma senhora tenta acalmar a fera e toma um tapa no rosto. Ela se afasta. A mãe, ainda atordoada com tudo, parte em palavras para cima da garota do patinete, que agora tem o rosto bem ensanguentado. O corte é pequeno, nada grave, afirma o senhor que a contem e tenta acalmar a situação.
A mesma senhora que tomou um tapa de raspão da criança vê um coelhinho de pelúcia na bolsa do carrinho, o pega e entrega a criança. Ele o arranca da mão da senhora, o chacoalha para todos os lados, o atira ao chão e a senhora o pega novamente e devolve à criança.
A confusão é generalizada. O senhor ainda segurando o pulso da garota para um taxi, pega todas as coisas dela, abre a porta, joga tudo dentro, a empurra junto, fecha a porta e manda o taxista seguir para um hospital. A mãe, mesmo com a criança histérica, aos berros no carrinho, se alcama e agradece. Fica um pouco imóvel sem ouvir os que lhe perguntam se está bem e se quer ajuda para voltar para casa. Olhar perdido, coloca a mão sobre a cabeça da criança que aos poucos vai também se acalmando, agradece a ajuda.
O pequeno coelhinho de pelúcia está jogado na calçada, cabeça para um lado, corpo para o outro. De tanta raiva a criança mimada decepou a cabeça de sua coelhinha e a atirou longe. A mãe triste recolhe cabeça e corpo e os encosta na quina da parede lado a lado. Os que estão em volta olham com tristeza e certo horror a cena.
A coelhinha decepada fica lá, esquecida. Tem uma feição muito leve, simpática, sorridente. Os pedestres começam a passar por ela sem percebê-la. É o único depoimento, o único testemunho do ocorrido. Quem se importa? Destes que passam, ninguém viu, ninguém ouviu, ninguém fala.
Um casal passa, vê a coelhinha decepada, esquecida, largada. A pegam, cabeça numa mão, corpo noutro, admiram a expressão simpática, leve, o pequeno corpo de braços abertos, convidativos. Juntam as duas partes. Demoram um pouco para perceber que é uma coelhinha e não um coelhinho, quando percebem se afeiçoam mais ainda. Segurando com carinho a levam para casa. Uma boa lavada, alguns pontos aqui e ali, cabeça presa ao corpo, de volta a vida.
Rindo, num humor macabro, lembram que depois de guilhotinada a cabeça humana segue por um breve instante falando, piscando, se expressando, enquanto o sangue do corpo espira em jatos intermitentes, bate na lamina da guilhotina e morre na madeira até a próxima execução. O farto público que acompanha entusiasmado a execução só pode ver a cabeça rolando, quando vê, pelo menos até ser recolhida.
Execuções foram por séculos diversão para grande público. Acionada a lâmina, o som seco do corte, cabeça ao chão. Aguardavam breve momento e voltavam conversando para suas casas conversando, julgando.
Execuções foram substituídas por cenas de histeria, patéticas.
A coelhinha decepada foi indiferente para os que passaram.
O enchimento da coelhinha teve que ser retirado para um bom banho. Seca mais rápido. O tecido não desbotou. Secou, é levado à mesa e espalhado para ser remontado e costurado com cuidado e carinho.
- Será que esta geração mais nova sabe o que é destripar o mico?
- Se souberem, o que duvido, é coisa de antigamente, não devem falar porque é politicamente incorreto.
- Estás brincando?
E riem.
- ... poeticamente incorreto...
E seguem cuidadosamente reconstruindo o brinquedo
- Agora, não resta dúvida que até estas criancinhas de hoje na mais tenra idade já sabem como decepar uma cabeça. Os tempos são outros.
A coelhinha está remendada. Simpática, doce. Antes de ter seu destino tomado, vai ficar ali para ser acariciada.
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