Terminei de tomar o café da manhã, olhei para o leito e me perguntei "Ué? Não está respirando?" Fui até ele, coloquei a mão no seu peito. Sai do quarto, fiz sinal discreto com as mãos para o médico sinalizando que parou, ele respondeu também com as mãos sem fazer alarde, levantou se e me acompanhou, entrou no quarto, colocou o dedo no pescoço e com cara de espanto disse " Foi. Não esperava que fosse tão rápido". Foi-se meu karma, o mais pesado de minha vida.
Mesmo com todos problemas que tive com ele pela vida, e foram muitos, frequentes, alguns para lá de desagradáveis, as pernas deram uma amolecida. Sinto profundamente pelo que foi.
A dimensão do que aconteceu pode estar numa resposta que ouvi várias vezes pela vida de amigos próximos dele: ¨Não sabia que Arturo tinha um filho¨. A última foi numa reunião entre amigos aviadores dele quando quem falou a mesma frase quase caiu da cadeira com a descoberta depois de mais de 60 anos de convívio.
Não faz muito o apartamento dele ficou sem internet durante alguns dias. Quando fui avisado, fui até lá, peguei os documentos necessários para religar tudo, tomei o elevador para a garagem, quando abri a porta dei com meu tio que me deu um esculhambo sem tamanho. ¨Você quer matar seu pai?¨. Coisas de família. Só fiquei chateado de não ter respondido que ele, meu pai, como pai, estava morto desde antes de 1966, quando se separou de minha mãe e saiu de casa. Os anos seguintes, sem ele por perto, foram os mais leves e tranquilos daquele momento de minha vida, sem nenhuma discussão dele com meus irmãos, filhos do primeiro casamento de minha mãe, viuva, nem com ela se trancando no quarto por causa de enxaqueca, que minha irmã dizia ser sempre curada com bife gelado.
A primeira surra a gente não esquece. A bem da verdade, eu não me lembro, mas tenho claro o primeiro espancamento, e o pavor que passei a ter dele depois disto. Confesso que de anjinho eu tinha nota zero, e que a razão para a feroz e desproporcional surra foi minha primeira suspensão, ainda no pré-primário.
Da segunda escapei com a intervensão do braço forte de minha mãe, que conseguiu segurar o punho fechado dele ainda no ar. Pelo menos reagi e deixei claro que por mais aquela reação desproporcional ao meu acidente de carro, causei uma batida, ficaria dois anos anos sem vê-lo, e assim o fiz. Eu tinha 16 anos e até os 18 foi uma paz. Por causa da pressão de toda família, principalmente minha avó, mãe dele, acabei num restaurante, de merda direi, para uma sincera conversa pai - filho. Desde restaurante italiano, ou dito italiano, que felizmente fechou logo depois, e da conversa, que ele falou muito, lembro de uma das sacadas boas que tive na minha vida: ¨Me diz uma coisa, quem é o adulto aqui?¨. Não podeira estar mais certo. Ele enfiou o rabo entre as pernas. Anos depois descobri que os mais próximos da família dele o chamavam de "eterno adolescente". Nada mais real.
Hoje tanto se fala de bulling, inclusive sobre bulling familiar. Sei bem o que é isto. Ou não terá sido isto? Certo é que ele competia comigo, coisa da cabeça dele, não minha.
Uma vez, voltando do Guarujá, ele no seu potente SP2 e eu no Fuscão de sua mulher de então, no meio da Serra do Mar me encheu o saco da lerdeza dele, passei e sumi. Não imaginei que seu ego de brilhante motorista, ou piloto, ficasse tão afetado. De novo, não tomei uma surra porque a divina senhora o conteve.
O filho que ele gostaria de ter tido sei bem quem seria porque ele nunca teve qualquer constrangimento não só de apontar quem eram, mas chamá-los de filhos para toda plateia presente. Ciumes meu, dirão? O que houve antes de 1966 e a separação de minha mãe foi bem pesado, supera, melhor, apaga qualquer outro sentimento. Ciúmes? Eu pensava: vai firme que o pai é teu.
Ao que aconteceu comigo juntou-se o que ocorreu com minha mãe e o que pela vida foi ocorrendo no relacionamento com suas outras companheiras. Sempre me questionei se não havia um exagero por parte de minha mãe, mas não, a prova conclusiva veio com o encontro de minha babá faz uns poucos anos. E, mais cômico, com as próprias histórias que ele contava de sua vida nestes últimos anos. O que minha mãe contou bateu palavra por palavra.
Os jantares de quintas-feiras tinha este confessar inconsciente que tirou um monte de fatos pesados limbo da raiva para os campos da comédia.
Ele era um monstro? Definitivamente não. Vou defini-lo como um tanto pragmático para sí próprio. Com a maioria das pessoas era um doce, uma pessoa adorável, querida. Também tive estes momentos, mas recheados de estupideses completamente dispensáveis.
Sei quem sou e sei muito bem quem fui. Nestes poucos dias pós sua ida fiquei relembrando e, pós perda, buscando culpas, razões e etc... A bem da verdade, não soube me posicionar e reacionei muito menos que o necessário, e não raro da forma pouco apropriada para o momento. No final da vida dele, quando finalmente ele baixou a bola, eu até quis conversar, passar a limpo, mas já não era mais tempo, passou, acabou, portanto tenho que engolir o que foi e ponto final. Defino isto como o karma do karma, o não poder vomitar.
Da mesma forma que simplesmente apagou de minha memória os tempos que ele ainda estava em casa, casado com minha mãe, espero que a maluquice pesada desta nossa vida se apague na minha cabeça. Os bons momentos que ele me proporcionou, que existiram, ainda estão vivos. Afinal, como esquecer um razante de avião na rua Augusta? Sim, verdade. PT BDU, ou Bidú, o apelido do maravilhoso Aero Comander 560U vermelho e branco.
Teve e tem piores, muito piores, muito piores mesmo, gente com uma capacidade destrutiva sem tamanho. Não foi o caso dele. A vítima dele, se é que se pode chamar assim, foi o filho, eu no caso, o único filho, pelo menos que se saiba até aqui.
A psiquiatria ou psicologia criou um termo para definir a personalidade dele: frienemy, ou o amigo-inimigo. Encaixa perfeito. A mulherada que passou pelo seu mel pelo menos saiu da piração encantada com as qualidades dele. Como disse sabiamente uma delas ¨amor emburrece¨. Sacada genial, a mais pura verdade.
Frienemy ("Frenemy" is an informal term that describes a person who is both a friend and an enemy, or pretends to be a friend but is actually an enemy)
Vá em paz e por favor comporte-se com as mulheres que encontrar aí em cima ou lá em baixo. Lá em baixo acho que não vão se importar muito, mesmo assim, onde quer que esteja veja se deixa a adolescência para trás.
A bem da verdade entender uma brincadeira ou piada nunca foi o seu forte.